Jia Zhang-ke: ser cinesta é ser punk

Jia Zhang-ke nem sequer existe nos seus próprios filmes. Em "Unknown Pleasures" (2002), terceira longa-metragem do realizador chinês, a personagem principal do seu primeiro filme, "Pickpocket" (1997), pergunta a um vendedor de DVD piratas se ele tem "Pickpocket" ou "Plataforma", a segunda longa. A resposta é negativa, e o vendedor acaba por lhe passar uma cópia de "Pulp Fiction". É, certamente, mais fácil ver "Pulp Fiction" na China do que um filme de Jia Zhang-ke. Mas durante muito tempo foi, justamente, através de DVD piratas e de todo um circuito clandestino que a obra deste autor proibido pôde ser vista no seu país. Até recentemente. Até "O Mundo".

Jia Zhang-ke, 35 anos, é o mais notório dos realizadores da chamada "sexta geração", um grupo de autores que emergiu na ressaca de Tiananmen e que começou a filmar a China com outros olhos. Como alguém escreveu, os seus antecessores, a quinta geração de Zhang Yimou e Chen Kaige que fez figura nos anos 80, especializaram-se em filmes bonitos situados num passado rural; a sexta geração devolveu a realidade - e o realismo - ao cinema chinês, centrando-se no presente urbano. Pagaram um preço por isso: foram banidos pelo sistema oficial do cinema chinês - na prática, a censura - num país onde o argumento, o resultado final e até a candidatura a um festival internacional devem ser aprovados pelas autoridades. Mas isso não os impediu de filmar, a expensas próprias ou com financiamento privado, muitas vezes vindo de fora ("Plataforma", por exemplo, foi em parte financiado pela produtora do japonês Takeshi Kitano), em condições de semi-clandestinidade.

Curiosamente, Jia Zhang-ke foi objecto de uma retrospectiva enquanto "herói independente" no Festival IndieLisboa, em Abril do ano passado, numa altura em que o Instituto do Cinema Chinês reconhecera os seus créditos de realizador. Ou seja, pela primeira vez, teve autorização oficial para filmar e, talvez mais importante do que tudo, pela primeira vez um filme seu foi exibido no circuito normal dos cinemas chineses. "O Mundo", quarta longa-metragem do realizador é, portanto, o seu primeiro filme "legal".

Isso significa que agora é um realizador "oficial"? Nada disso, responde Jia Zhang-ke, de passagem pelo IndieLisboa, há quase um ano. Se houve cedências, foi do outro lado. "Isto deve-se à abertura da política do cinema chinês. Que resulta, também, das reivindicações de um grupo de dez realizadores. Desde há uns anos, temos lutado pela afirmação do cinema independente na China, através, por exemplo, da publicação de manifestos em jornais", diz. A entrevista mal começou, e ele já está a fumar. Compulsivamente. ""O Mundo" não deixa de ser um filme independente. Isto significa a aceitação dos filmes independentes por parte do cinema chinês."

o mundo é um palco.

A obra de Jia Zhang-ke tem seguido os traços da China mutante e das suas contradições nos últimos 25 anos, com desencanto (mas não totalmente desprovido de romantismo) e com sentido de perda. Cada um dos seus filmes parece começar onde o anterior acabou. Não é só porque têm uma cronologia muito definida: a China pós-revolução cultural de "Plataforma", épico intimista sobre uma trupe de artistas itinerantes nos anos 80, os anos 90 de "Pickpocket", sobre as desaventuras de um vigarista de bairro, a China do novo milénio, em galopante progresso, de "Unknown Pleasures". É também porque acompanham essa evolução. Exemplo simbólico: no anterior "Unknown Pleasures", via-se uma auto-estrada em construção; em "O Mundo", a auto-estrada já está pronta, os carros já circulam nela.

De certa forma, através da sua filmografia, Jia Zhang-ke tem produzido um trabalho de luto. Comparando com "O Mundo", os seus anteriores filmes mostram uma China que já parece arcaica. "O Mundo", como ele resume, "é a China agora". E o mundo é um palco, puro artifício: "Veja o mundo sem sair de Beijing", anunciam os altifalantes do World Park, que existe mesmo nos arredores da capital chinesa e serviu de "décor" ao filme de Jia Zhang-ke (uma das vantagens de ser um realizador oficialmente reconhecido, diz ele, foi "rodar num espaço tão público e filmar assim abertamente", o que teria sido impossível antes).

É um imenso parque temático, uma reprodução do mundo em miniatura, com réplicas de Manhattan ("As Torres Gémeas foram atacadas a 11 de Setembro, mas nós ainda as temos", diz uma personagem), da Torre Eiffel (um terço do tamanho original), do Taj Mahal, das Pirâmides do Egipto... Uma ilusão de mundo, com as promessas que representa para quem não conhece o mundo: mobilidade, contacto directo, e não virtual, com o exterior - enfim, a "real thing".

Daí o título... Mas será que ele não pretende, também, reclamar o lugar da China no mundo? Um dos espantos que se pode ter ao ver "O Mundo" é notar como a China já faz parte de um mundo que reconhecemos, que é o mundo globalizado. "A China ainda não entrou no mundo. Ainda está a tentar", diz o realizador. "Ou, por outro, uma pequena parte da população conseguiu entrar, mas a maioria não. Actualmente, com esta euforia toda da globalização e do progresso, existe um grande fosso entre os novos ricos e as classes mais baixas, entre as cidades e a China rural. A distância é cada vez maior e, com o desenvolvimento, vai-se deixando muita gente para trás. Os mais desprovidos estão a pagar a factura."

As preferências de Zhang-ke sempre foram para os marginais, ou para as "vítimas" da nova China capitalista. Que, em "O Mundo", são os trabalhadores do parque - guardas, bailarinas -, gente que deixou a sua região rural para vir para Beijing. "O Mundo" mostra uma China que, de certa maneira, já se abriu (economicamente, pelo menos), mas, ao mesmo tempo, continua encerrada em si mesma: "Veja o mundo sem sair de Beijing"... É a primeira vez que Jia Zhang-ke filma na capital chinesa: os seus filmes anteriores foram todos rodados na sua província natal, Shianxi, no nordeste, que o realizador considera "o rosto original" da China. Até o trabalho sobre o tempo nesses filmes era outro: "Plataforma", a sua única obra, até agora, a ter estreado comercialmente em Portugal, é uma experiência de lentidão; "Unknown Pleasures" é um filme a duas velocidades. Em "O Mundo", as coisas já aceleraram definitivamente, é um filme mais ágil (e, porventura, o mais construído). Tem-se a sensação de que Jia Zhang-ke passou para uma outra zona, um outro lado. Na canção-tema de "Plataforma", dizia-se qualquer coisa como "continuamos à espera para sempre..." "O Mundo" significa que essa espera acabou?

"Sim, podemos, de certa forma, afirmar isso, que se chegou ao fim da espera. Mas como um processo doloroso." Jia Zhnag-ke assinala duas cenas do filme em que isso se revela: como a China pujante, moderna "é uma realidade inatingível da maioria". Uma sequência inicial, a fechar o genérico, em que um camponês surge em primeiro plano, tendo por detrás a distante Torre Eiffel; e outro momento do filme, em que um avião passa e alguém pergunta: "Quem viaja naqueles aviões?" Resposta: "Quem sabe... Não conheço ninguém que alguma vez tenha estado num avião." Há alguma coisa de positivo nesta China contemporânea que se vê em "O Mundo"? "Agora só sinto a perda. E mágoa", responde o realizador.

Mas o mundo que se vê em "O Mundo" não é exclusivo da China. É por isso que estão lá artistas russas, que chegam ao World Park para trabalhar. Isso é uma realidade - "cada vez mais há grupos de artistas que vêm da Rússia e da Mongólia" - mas, além disso, "russos e chineses têm um "background" comum: ambos vieram do comunismo e, de certa forma, partilham a mesma desilusão, a mesma dor", explica Zhang-ke. "A China não é o único país a sofrer com este processo. Nesse aspecto, trata-se de internacionalizar o problema."

Pensando numa certa nostalgia que se descola dos seus anteriores filmes - mas não de "O Mundo", ou não tanto -, será que Zhang-ke se sente mais próximo de uma China tradicionalista? "Acho que todos os chineses sentem, no fundo, alguma nostalgia. Mas ninguém pode evitar o futuro."

no future.

"There"s no fucking future", dizia uma personagem em "Unknown Pleasures", slogan punk num filme assumidamente inspirado no título de um álbum dos Joy Division. Ser um realizador independente, na China, é também ser punk? (Porque se trabalha com meios próprios, porque não há a preocupação de que a produção seja grandiosa, polidinha, e porque se está do lado de quem está à margem da sociedade.) "De certa forma, sim. Porque ser independente é como ser uma terceira pessoa da sociedade, não fazendo parte." Não, o cinema de Jia Zhang-ke não mudou ("O Mundo" é, porventura, o seu filme mais pessimista). O que mudou é que, agora, os seus filmes podem ser mostrados nas salas nacionais. "Durante 15 anos, de 1990 a 2005, o público chinês não pôde ver filmes independentes nos cinemas. E, a partir de agora, sim." Para Jia Zhnag-ke, o importante é conquistar um público que mal conhece o seu nome, apesar de ter sido seleccionado para Cannes e Veneza, apesar de ser aclamado (e exibido) internacionalmente (não é raro um autor ser mais reconhecido fora de casa do que dentro, raro é o contrário: basta pensar no cinema português...). Em 2004, chegou mesmo a dizer que, se não pudesse mostrar a sua obra a um público nacional, se arriscava a "perder o gosto de fazer filmes".

O desafio é imenso, num país que, seguindo a tendência global, está mais habituado a uma dieta de evasão importada de Hollywood ou made in China (filmes-espectáculo como os últimos de Zhang Yimou) e talvez não queira ver no cinema a mediocridade da sua vida quotidiana...

Na verdade, "O Mundo" rendeu menos de um milhão de yuans (100 mil euros), o que não é muito, mesmo na China, e desapareceu rapidamente de cartaz. Involuntariamente ou não, ao entreabrir as portas ao cinema independente, o regime chinês impôs um teste a esta geração de realizadores reconhecida no estrangeiro, mas não em casa.

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