CERCI: Trinta anos a ajudar a construir projectos de vida

A CERCI de Lisboa é a pioneira no movimento para educação e reabilitação de crianças inadaptadas. Passados 30 anos, continua a quer mostrar de que forma pessoas diferentes podem ajudar na construção da sociedade

Mafalda Tainha, 28 anos, trabalha há três anos no jardim de infância de Flamenga, na Misericórdia, em Lisboa. "Ponho as mesas. Faço as camas. Conto histórias. Brinco e faço jogos com os meninos", resume. Mafalda, entre crianças, jovens e adultos, é uma das 600 pessoas que a CERCI (Cooperativa para a Educação e Reabilitação de Crianças Inadaptadas) de Lisboa, há já 30 anos, ajuda e apoia na construção de um projecto de vida. Tudo começou no período que se seguiu à Revolução dos Cravos. "Estávamos em 1975. Uma altura complicada. Mas o 25 de Abril foi a explosão do exercício da democracia. E apesar das dificuldades, o contexto político ajudou dez pessoas a fundar a CERCI de Lisboa", lembra a presidente da direcção, Julieta Sanches.
Para comemorar os seus 30 anos, a CERCI de Lisboa organiza, a 21 e 22 de Fevereiro, o seminário "Construir a Equidade numa Sociedade Plural" que se propõe a mostrar "de que forma pessoas diferentes podem ajudar na construção de uma sociedade".
A CERCI de Lisboa, pioneira no impulso à legalização nesta matéria, acolhe e apoia actualmente a população de mais dois concelhos: Loures e Amadora. Tem oito estruturas espalhadas pela cidade e integra ainda diversos serviços e programas. Tudo em prol de uma única missão: "Contribuir para a promoção da qualidade de vida das pessoas com deficiência mental e das pessoas em situação de dependência."

A "luz do farol"Fátima Duarte é psicóloga e coordenadora do Programa de Intervenção Comunitária (PIC), um projecto da CERCI para apoio a crianças e jovens em risco social que frequentarem o ensino regular. "Não gostamos de falar em incapacidades. Todos nós as temos. É mais positivo olhar para o que somos capazes de fazer do que para o que não somos capazes", diz Fátima Duarte quando questionada quanto aos problemas dos utentes que acolhe o centro.
A psicóloga explica que todo o ser humano tem um projecto de vida: "Tal como nós. Também estas crianças, jovens e adultos [os utentes] querem fazer algo da vida." A CERCI pretende, desta forma, abrir caminho e funcionar como a "luz do farol" que leva os utentes a descobrir o seu projecto de vida, como por exemplo, arranjar um emprego.
Filipa Tainha, mãe da Mafalda, conta que a filha "fez um progresso extraordinário" desde que entrou para a CERCI, em 1998. Filipa conta que a Mafalda, desde que está no centro, aprendeu a autonomia do transporte e que ainda tem a esperança de que a filha, um dia, lhe diga: "Até já. Vou ao cinema com uns amigos."
Mafalda levanta-se às 07h00 da manhã. É a primeira a sair de casa e não acorda ninguém. Desde 17 de Julho de 2000, já com 22 anos, apanha na Lapa, sozinha, a carreira 104 para ir trabalhar para o infantário: "Foi um grande passo", conta a mãe com as lágrimas a teimarem sair pelo canto do olho. No jardim de infância, Mafalda "faz o trabalho que tinha de ser feito por alguém". Trabalha com crianças de dois, três anos e gosta imenso: "Ela adora crianças. É um trabalho onde se sente bem", explica a mãe.
Por sua vez, a psicóloga Fátima Duarte explica que a inserção na vida activa é feita indo ao encontro dos gostos e capacidades que os próprios utentes revelam ter para desempenhar uma determinada actividade: "Eles são colocados de acordo com as suas apetências e desejos." No infantário, Mafalda "é acompanhada por técnicos que avaliam semanalmente o seu trabalho e resolvem determinados problemas".
Ao meio-dia, vai para um dos Centros de Actividades Ocupacionais (CAO) da CERCI, na Bela Vista. Aqui almoça e, na sala 5, faz tapetes e uma das actividades de trabalho para o exterior - um dos passos de fabrico de torneiras. Também ajuda na cozinha: "A minha filha é muito prestável", diz Filipa. Espontânea, Mafalda conta que dança e toca num rancho e que gosta de Marco Paulo. Quando chega a casa liga a televisão para ver a sua série preferida, os Morangos com Açúcar, e às 22h00, em ponto, já está na cama: "Eu tenho que trabalhar", explica.
"Se não fosse a CERCI eu estaria perdida. O centro é fundamental", diz Filipa Tainha.

Na CERCI também se diverte
Quando se entra no CAO da Bela Vista, um edifício creme e cor de tijolo com três mil metros quadrados, há uma mulher de 27 anos que nos dá as boas-vindas. Com um grande abraço, diz que se chama Ana Rute e pergunta se queremos que ela nos leve a conhecer o centro.
Mais tarde, mostrou como se brinca na sala de Snoezelen, um espaço com colchões de água quente. Branco, com música, luzes de várias cores e cilindros com bolas flutuantes. É uma sala de relaxe e estimulação "ideal para os utentes em situações de crise". Ao lado, está outra sala de estimulação, com uma piscina de bolas, puffs e um colchão de onde sai diferentes melodias através doo toque dos pés e das mãos.
Na Bela Vista, 80 jovens e adultos, além das terapias, fazem tapetes, cabides, quadros, vasos, jardinagem, produtos sazonais, saquinhos, mealheiros e muitas outras coisas. Esta é uma das formas de financiamento da CERCI de Lisboa. Os produtos feitos pelos utentes são vendidos em exposições e angariações de fundos.
Por outro lado, o Estado comparticipa em cerca de 80 por cento por cada utente, o que, segundo Julieta Sanches, "não é suficiente". Já as famílias pagam consoante os seus rendimentos.
"As dificuldades são muitas", diz a presidente da CERCI de Lisboa. A primeira começa na forma de financiamento do centro: "Queremos que o Estado comparticipe em 100 por cento". Outra das dificuldades é a "procura de respostas residenciais e de centros de actividades ocupacionais".
No CAO da Bela Vista, funciona também a única residência da CERCI de Lisboa, mas apenas com capacidade para vinte pessoas.
Filipa Tainha, a mãe da Mafalda, conta que a filha andou em colégios de educação especial até aos 18 anos, idade em que teve de sair. Na altura questionou-se: "E agora? Para onde vai?". Em conjunto com outros pais, que também fizeram a mesma questão a si próprios, decidiu dirigir-se à CERCI. Contudo, o centro não tinha vagas. Porém, disponibilizou-se para os ajudar a arranjar um outro espaço. Nasce, então, um dos núcleos da CERCI de Lisboa, o centro Passo a Passo, que funciona actualmente como CAO.
O mais velho utente da CERCI de Lisboa tem 48 anos. Começou como aluno nos Olivais, o primeiro centro da CERCI. Até aos 16 anos, as crianças apoiadas pelo centro são acompanhadas, em casa, pela equipa do Programa Comunitário de Intervenção Precoce.
Mas, no CAO da Bela Vista, também se diverte. Depois do almoço, há aulas de expressão corporal. Ao som de "I"m a Barbie girl", dos Aqua, cerca de 15 jovens dançam, metem os braços no ar e pulam. Sentam-se no chão e brincam ao jogo das frutas. O Rui está envergonhado e diz "puré". Depois da técnica o emendar, ele ri-se e com a mão na cara, ajudado, diz então "banana". Há risos e gargalhadas, mas aqui não há preconceito.

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