Direitos sagrados?

O"ultraje por motivo de crença religiosa" ou o "impedimento, perturbação ou ultraje a acto de culto" são crimes previstos e punidos no nosso Código Penal, como referimos nesta coluna a semana passada.A situação dos cartoonistas dinamarqueses se tivesse ocorrido em Portugal poderia, sem muita surpresa, terminar com a sua condenação num qualquer tribunal nacional. E não se pense que tal condenação seria uma aberração em termos judiciais, no nosso país e, muito provavelmente, na Europa.
Ao contrário do que se poderia pensar, na Europa ou mesmo nos EUA onde a liberdade de expressão tem uma primazia constitucional indiscutível, tal direito ou liberdade não é absoluto, nem sagrado. Todos sabemos haver perseguições criminais, tanto em França como na Alemanha, seja aos "historiadores revisionistas" que põem em causa a existência do Holocausto seja, por exemplo, a pessoas como o político Jean-Marie le Pen por fazer trocadilhos verbais com "fornos crematórios".
O crime de "discriminação racial ou religiosa", igualmente previsto na nossa lei penal, considera punível com pena de prisão de 6 meses a 5 anos, quem, "por escrito destinado a divulgação (...) difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião, nomeadamente através da negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade". A liberdade de expressão está cheia de restrições pela Europa fora...
Claro que se podem levantar muitas objecções e, também, restrições quanto à eventual criminalização da actuação dos cartoonistas dinamarqueses face à nossa lei penal. O crime de "ultraje por motivo de crença religiosa" para "existir" implica que alguém "publicamente ofenda outra pessoa ou dela escarneça em razão da sua crença". Isto é, parece exigir um "ataque" directo e concreto a uma pessoa, não se satisfazendo com uma "ofensa em geral", como parece ser o caso dos cartoons publicados. E mesmo o crime de "ultraje a acto de culto" só prevê a punição de "quem publicamente vilipendiar acto de culto de religião ou dele escarnecer". Ora, a maior parte dos cartoons parece não "retratar" actos de culto, pelo que também não existiria este crime. Sendo certo que a definição do que é "vilipendiar" ou "escarnecer" também seria matéria de ampla discussão jurídica. De qualquer forma, os cartoonistas dinamarqueses no nosso país podiam passar um mau bocado...
É conveniente lembrar que as restrições à liberdade de expressão, na nossa lei penal, são mesmo muitas e variadas. Por vezes, herdeiras de uma concepção "totalitária" da autoridade que se esconde atrás de expressões como "a liberdade de expressão é muito importante, mas o respeitinho é muito bonito...". Ou ainda, a expressão "o meu direito acaba onde o teu começa" que, sendo uma quase evidência, adultera completamente as relações entre os direitos. Os direitos fundamentais não existem estáticos e definitivos, do género, de um lado, a liberdade de expressão, e do outro, a honra de alguém. São direitos de "geometria variável", cuja definição dos limites e contornos tem de ter em conta as realidades concretas em que tais direitos se exercem ou "colidem".
Por exemplo e ainda quanto aos cartoons: se se pode discutir se a sua original publicação seria ou não crime em Portugal, parece claro que os factos subsequentes a tal publicação, a relevância pública que a "polémica Islão/Liberdade de expressão" atingiu, justificam plenamente a sua "republicação", quanto mais não seja em consequência de um alargamento dos limites da liberdade de expressão associados agora ao direito à informação.
No meu entender, mesmo a publicação original dos cartoons não seria crime no nosso país, numa interpretação constitucional e à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, das disposições penais. Mas tal entendimento, seguramente, não é consensual.
É preciso lembrar a facilidade com que são aceites as restrições à liberdade de expressão no nosso país. Na revisão do código penal, em 1995, por exemplo, criou-se o crime de "ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço" que pune com a pena de prisão até 6 meses ou pena de multa, quem "sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a pessoa colectiva, instituição, corporação, organismo ou serviço que exerça autoridade pública".
Esta disposição que nega o espaço público à "crítica injusta" ou a "acusações erradas" no domínio da discussão das actividades das autoridades públicas, reforça o poder, até de "serviços" (!), no campo da defesa da sua "credibilidade, prestígio e confiança" e constitui um evidente entrave à liberdade de expressão e de opinião. As críticas e os "ataques" verbais às autoridades públicas ou à sua actuação devem ser o mais livres e irrestritas possíveis. A "credibilidade, prestígio e confiança" desses organismos ou serviços não podem sobrepor-se à liberdade de expressão.
A liberdade de expressão não serve para proteger somente o que é verdadeiro, ou o que é belo, ou o que é bom ou, ainda, o que é maioritário. De resto, sobre a liberdade de alguém expressar a "verdade", o "belo" ou o "bonito", não haverá muitos que levantem obstáculos. A liberdade de expressão seria assim um "dado adquirido". Mas, claro que cada um fala da "sua" percepção da verdade ou da "sua" concepção do belo...
Mas a verdade é que a liberdade de expressão serve (também) para proteger as "mentiras", as "maldades" e as "fealdades". Serve para proteger as opiniões e expressões "ofensivas" ou "irritantes" e que, muitas vezes, são minoritárias.
Um exemplo: nos EUA, por uma decisão do Supremo Tribunal em 1989, o "queimar da bandeira" como forma de protesto e de exercício da liberdade de expressão, apesar de considerado profundamente ofensivo para muitos cidadãos, foi consagrado como um direito constitucional.
No nosso país, manda o "respeitinho": o código penal prevê e pune como crime, o "ultrajar a República, o hino nacional, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido"... Advogado

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