"A Casa da Música é o único lugar do Porto onde podemos andar de skate à vontade"

Por detrás da função original de espaço cultural de excelência, a Casa da Música esconde uma faceta que o arquitecto Rem Koolhas não previu, mas aprova: funciona diariamente como skate park improvisado para dezenas de jovens portuenses. Mas há outros espaços assim na cidade, como o pátio da Cadeia da Relação, que aos fins-de-semana se transforma em campo de futebol

Uma aragem fria varre o pátio ondulado da Casa da Música, mas não é incómoda o suficiente para demover os cerca de vinte jovens que ali estão. É um número considerável de adeptos para um dia de semana. Já passa das 17h00, um rapaz com patins em linha desliza sobre pavimento irregular. Os outros adolescentes preferem fazê-lo sobre as quatro rodas do skate, aproveitam as formas orgânicas desenhadas pelo arquitecto holandês Rem Koolhaas. As raparigas dispensam as manobras radicais e acrobacias, estão todas sentadas nas escadarias do gigantesco meteorito que, em 2005, "caiu" junto à Rotunda da Boavista, no Porto. Os vidros que acompanham os degraus, servindo de corrimão, protegem-nas do frio. Esta é uma imagem que se repete quase todos os dias à porta da Casa da Música: na falta de uma pista de skate no Porto, os entusiastas da modalidade reúnem-se à volta da edifício de betão branco. O fenómeno não impressiona os responsáveis do equipamento cultural. "Já sabíamos que estas ondas seriam apetecíveis, não foi uma grande surpresa para nós. A maior afluência regista-se aos fins-de-semana, quando vemos não só skaters, mas também pessoas de todas as idades munidas de patins e bicicletas. Não nos incomodam minimamente; pelo contrário, até gostamos de ver como o nosso espaço envolvente é utilizado para o lazer", explicou ao PÚBLICO Francisco Pires, director de produção.

Rem Koolhaas "achou muita piada"
O arquitecto Nuno Rosado, do Office for Metropolitan Architecture, o mesmo escritório de Koolhaas, garante que "a bolha da Casa da Música nunca surgiu como uma pista de skate, mas sim para incorporar na praça dois cafés". Contudo, frisa que o colega holandês "achou muita piada" ver jovens a fazer desporto, crianças a brincar e até pessoas deitadas a apanhar sol na praça. Aliás, na sua opinião, assim devem ser os espaços públicos: lugares que não restrinjam o leque de opções, que se prestem a múltiplas funcionalidades.
Rubem Teixeira, de 15 anos, aluno do 10.º ano da Escola Secundária Clara de Resende, começou a frequentar a Casa da Música a convite de um amigo. Nunca assistiu a um concerto naquele auditório. "Venho andar de patins em linha quando faz bom tempo ou há greve na escola", acrescenta.
O adolescente conta que a pista de skate improvisada é um ponto de encontro de jovens, onde se faz amigos em poucos minutos. Ao seu lado está Nuno Cardoso, de 14 anos, que estuda no Colégio Alemão desde os quatro. Os dois conheceram-se no próprio dia. E fazem em uníssono a mesma reivindicação: "Precisamos muito de um skate park no Porto". Não é que não gostem da Casa da Música, mas já conhecem tão bem os cantos à casa que a monotonia se instalou. Querem obstáculos, rampas e outros elementos próprios para a prática da modalidade.

"Como é que o Porto não tem um skate park?"Nuno Cardoso tem o cabelo desgrenhado, as pontas um pouco mais claras do que a raiz. Traz vestidas calças de ganga ligeiramente esfarrapadas, sapatilhas pretas nos pés. Costuma participar em competições regionais e nacionais - diz que já ocupou o sétimo lugar numa delas - e sente vergonha pelo facto de o Porto não poder receber torneios. Cita o caso da Câmara de Ílhavo, que inaugurou no ano passado um skate park na Gafanha da Nazaré, tendo recrutado para o efeito Francisco Lopes, um arquitecto especializado neste tipo de equipamento. "Não compreendo como é que a segunda cidade do país ainda não tem um skate park. A Casa da Música é o único lugar onde podemos andar à vontade", desabafa.
Ângelo Matos, de 16 anos, tira um dos auscultadores do ouvido e entra na conversa. Diz que a iniciativa deveria partir da própria câmara. Nuno Cardoso concorda com o amigo Ângelo, recordando que em Portugal há pistas até "no meio das couves", ou seja, em concelhos com forte ruralidade. São comentários que não estão alheios à situação inusitada que tínhamos presenciado há cerca de meia hora.
(Façamos então um flash back. O carro escuro que transporta Rui Rio, presidente da Câmara do Porto, é abordado por vários jovens quando está a descer a Avenida da Boavista. O motorista pára a viatura, para que Rui Rio possa descer o vidro do automóvel e falar com os jovens que sorriem para ele. Distribui autógrafos e sorrisos para os adolescentes que saltitam à sua volta. Mas não se despede antes de ouvir o famoso pedido: "Presidente, construa-nos um skate park").
O sociólogo Virgílio Pereira explica que, quando os espaços públicos escasseiam, é natural que haja este tipo de apropriação. Não havendo pistas de skate, é natural que pátios ondulados sejam logo adoptados pelos jovens. Mesmo que esta não tenha sido a intenção do autor. "Estes fenómenos são curiosos e interessantes, mas são o resultado de uma grande falta, de uma longa tradição da ausência e de um desejo de sociabilidade", considera o professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Na sua opinião, "as pessoas estão acostumadas a ter tão pouco" que tratam de ocupar estes pedaços de chão livre que irrompem da densa malha urbana.
Um exemplo célebre desse tipo de ocupação é o pátio da Cadeia da Relação, junto ao Jardim da Cordoaria, onde funciona o Centro Português de Fotografia (CPF). O geógrafo Rio Fernandes vê "o futebol de sábado naquela praça de granito" como algo "cinco estrelas", opinião partilhada pela antropóloga Paula Mota Santos. Esta especialista no centro histórico do Porto acha o fenómeno "fantástico", embora admita que ele só tem lugar porque a Baixa praticamente não oferece espaços lúdicos aos adolescentes.

Futebol à porta da Cadeia da Relação A contrapartida desta agitação juvenil, rara numa Baixa cada vez mais deserta e envelhecida, é a "destruição" do património que é o edifício da Cadeia da Relação, reedificado em estilo clássico em 1765. Teresa Siza, directora do CPF, inventaria os danos infligidos ao edifício recuperado há apenas cinco anos com fundos comunitários: vidros partidos, caixilharias de madeira danificadas, pintura deteriorada e placas graníticas descoladas. "Há bolas que são atiradas deliberadamente contra o edifício, algumas estão até encravadas nas grades do terceiro piso", lamenta Teresa Siza.
António Oliveira, presidente da Junta de Freguesia da Sé, está ciente do problema, mas argumenta que não pode mudar, com passes de mágica, um tecido urbano tão antigo e consolidado. "Já solicitei à câmara a criação de um espaço na Cordoaria e vou reiterar o pedido, mas não podemos fazer mais do que isto", conclui o responsável.

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