Tóquio em Hollywood

Teria esta adaptação do "best-seller" de Arthur Golden sobre a ascensão de uma filha de pescadores a rainha das gueixas no Japão do entre-guerras sido um outro filme nas mãos de Steven Spielberg, que esteve durante muito tempo na calha para a realizar e acabou apenas a produzi-la? Provavelmente, mas não é descabido que este seja um daqueles filmes em que o produtor tem mais peso que o realizador. Porque, face ao que Rob Marshall (o coreógrafo e encenador teatral que se estreou no cinema com "Chicago") dele fez, torna-se evidente que esta nunca poderia ser uma fita de autor: tudo em "Memórias de uma Gueixa" remete para a velha linha de montagem dos grandes estúdios de Hollywood, para o inatacável profissionalismo dos grandes departamentos de arte da MGM ou da Warner - e para o anonimato terminal de produções feitas para maior glória dos seus actores, executadas por simples funcionários contratados para garantir a concretização eficaz do objecto.

Porque é isso que "Memórias de uma Gueixa" é: um objecto funcional perfeitamente integrado num género específico hollywoodiano e que lhe respeita os códigos e as regras, o chamada "women"s picture" dos anos 40/50, melodramas com fortes personagens femininas que lutam para encontrar a felicidade. Aqui, há uma história "à antiga", uma mulher que luta para ser dona do seu destino num mundo que insiste em negar-lho - só que ambientada num universo exótico para os costumes ocidentais, e substituindo Barbara Stanwyck, Bette Davis ou Joan Crawford por Zhang Ziyi, Gong Li e Michelle Yeoh (nenhuma delas japonesa...), falando em inglês de forte sotaque oriental (com excepção de Yeoh, todas aprenderam os diálogos foneticamente). Porque, no resto, a história de uma menina vendida para gueixa que ascende à posição da mais requisitada das tradicionais anfitriãs de aluguer nipónicas é melodrama hollywoodiano clássico puro, com os proverbiais obstáculos que têm de ser ultrapassados com trabalho, honestidade e bondade, com as pérfidas vilãs que, com misto de calculismo de clique e inveja pura e simples, tudo fazem para travar a heroína, terminando com um final feliz - enfim, com o final feliz possível para alguém cuja profissão não permite amar - que só em Hollywood poderia acontecer. Não há nada de mal nisso: nem todos os filmes precisam de ser filmes de autor, nem todo o cinema tem de ser mais do que uma história contada de maneira escorreita.

Mas é irritante ver três excelentes actrizes (e escolher entre a sageza de Michelle Yeoh, a entrega de Gong Li e o encanto de Zhang Ziyi é só uma opção de preferência pessoal) desperdiçar o seu talento nesta telenovela de luxo requintadamente filmada, ameaçando a cada instante desintegrar-se (sem nunca realmente o fazer) sob o peso do meticuloso decorativismo visual que reduz tudo a uma vistosa porcelana de montra. Há demasiado trabalho de pesquisa em "Memórias de uma Gueixa" para isto ser apenas "para turista ver", mas não há sustentação dramática suficiente para que isto seja mais do que um dramalhão à antiga para as senhoras burguesas das Avenidas Novas que esgotavam as "matinées" do Londres - e, claro, convém não confundir este idílio luxuoso com a verdadeira poesia nipónica. "Memórias de uma Geisha" é Hollywood a fingir-se exótica como na sua época dourada.

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