UmA TV DE Realidade longe da realidade

Oconceito de "televisão de realidade" tem estado associado em Portugal aos reality shows, por causa da entrada fulgurante do género em 2000 com o êxito do Big Brother na TVI. Debate e comentário públicos sobre o tema incidem sempre neste programa e seus sucedâneos na TVI (Quinta das Celebridades, Academia de Estrelas, Primeira Companhia) e na SIC (Bar da TV, Acorrentados, Masterplan, Senhora Dona Lady). Já o reality show que a RTP apresentou, Operação Triunfo, teve o benefício da dúvida, apesar de a sua caracterização o empurrar infalivelmente para o género do Big Brother ou da Academia de Estrelas. A Operação Triunfo permitiu a uma parte da audiência ver um reality show sem problemas de consciência.Todavia, os reality shows não esgotam nem de perto nem de longe o género de televisão de realidade. Um livro recente de Annette Hill, professora de Media na Universidade de Westminster e co-autora de The Television Studies Reader (Routledge, 2003), ajuda a retomar o conceito de televisão de realidade como central na produção televisiva. Nesse livro, Reality TV (Routledge, 2005), a autora define a televisão de realidade como "uma categoria totalizante que inclui uma ampla gama de programas de entretenimento acerca de pessoas reais. Muitas vezes chamada televisão popular factual, a TV de realidade situa-se em territórios de fronteira, entre a informação e o passatempo, o documentário e o drama".
O livro de Annette Hill centra-se no lado da audiência, mas começa por estabelecer historicamente o género. A importância da televisão de realidade resulta desde logo de englobar programas dos mais vistos das televisões nacionais, como sucede entre nós.
A televisão de realidade tem coexistido com a história da televisão, se considerarmos que o ""entretenimento factual" é uma categoria geralmente usada no seio da indústria televisiva (...). Na verdade, quase todos os programas de entretenimento acerca de pessoas verdadeiras aparecem debaixo do guarda-chuva da televisão popular factual". Assim, o conceito abarca os teledocumentários e outros programas factuais, como programas de jornalismo tablóide, do tipo dos que acompanham ambulâncias e rusgas de polícia, género de que já tivemos alguns programas em Portugal, quer na SIC quer na RTP. A autora refere que, "apesar de exemplos da TV de realidade poderem encontrar-se ao longo da história da televisão, os programas de realidade chegaram en masse no horário nobre durante os anos 1990."
Baseando-se em estudos de audiência, quer num amplíssimo inquérito em vários países com milhares de inquiridos, quer em grupos de foco ou vivência etnográfica junto de famílias, ela estabelece uma espécie de arco da televisão de realidade, que vai desde os programas mais próximos do teledocumentarismo até aos que mais se aproximam da ficção.
Os espectadores estabelecem as diferenças entre eles quanto à veracidade do conteúdo, não se incomodando com os elementos ficcionais - excepto se for quebrado o contrato ético entre media e espectador. É o que tenho referido em várias ocasiões: as intervenções "ficcionais" da produção nos Bares da TV ou nas Quintas são graves porque o operador de TV quebra as regras do jogo que ele mesmo criou e indicou ao espectador.
O êxito popular dos jogos de realidade como o Big Brother inscreve-se no alargamento da sociedade do espectáculo, na qual os indivíduos são avaliados no dia-a-dia pela sua capacidade de representarem papéis que atribuem a si mesmos, de socializarem como numa performance permanente. Ao mostrar "pessoas normais" nessa faceta, os reality games despertam grande interesse, pois fornecem uma aprendizagem de comportamento social que pode contribuir para a própria performance de quem vê e, portanto, para o seu próprio êxito social. E, precisamente porque motivam uma conversa social nas famílias, escolas, empregos e cafés, este tipo de programas só tem razão de ser quando obtém uma quota de audiência razoável.
Assim, até em jogos como a Quinta ou a 1ª Companhia há para o espectador elementos de aprendizagem que ele valoriza muito. A maior parte dos espectadores não é ortodoxa quanto à forma de retenção de informação e ensinamento: daí, também, o êxito de programas de realidade enquadrados num âmbito de entretenimento. É o caso de programas de mudanças e decoração da casa ou do jardim, de que há alguns exemplos na TV por cabo.
Noutros países existe uma variedade muito maior de programas de realidade, incluindo jogos, em que o elemento de eventual aprendizagem é superior ao do Big Brother e sucedâneos. Se numa Operação Triunfo os jovens concorrentes aprendiam a cantar má música popular comercial, num programa como Edwardian Country House (Channel 4, GB) os voluntários aprenderam a viver como aristocratas e seus criados por volta de 1900. No caso de Prairie House (PBS, EUA), os voluntários aprenderam a viver no passado rural americano e noutros programas britânicos viveram como vitorianos (1900s House) ou no período da Segunda Guerra Mundial (1940s House).
Desta forma, a televisão de realidade pode ser uma forma de uma parte da população reter informação e conhecimentos através de programas de passatempo. Os espectadores inquiridos são muito claros a esse respeito.
Além dos programas tablóides (Eu Confesso, 112, etc.), dos jogos (Big Brother, etc.), mudanças (Querido, Mudei a Casa), existem muitos outros de realidade que a televisão portuguesa ainda não testou, nomeadamente sobre partilha de vida com famílias, animais de estimação, mudanças de estilos de vida (se exceptuarmos o Esquadrão G, pouco genuíno e centrado nos apresentadores), troca de famílias, etc.
A tendência dos generalistas portugueses tem sido ou para os jogos (caríssimos na RTP, como Operação Triunfo e o desastroso SoccaStars) ou para o tablóide e o circense (Eu Confesso, Senhora Dona Lady), ou para os apanhados. A concentração quase só em jogos, muitas vezes totalmente afastados da vida quotidiana e social, como Senhora Dona Lady ou os programas da TVI concentrados em "celebridades" surrealistas (ou sub-realistas), empobrece as possibilidades dos operadores na área da programação popular em horário nobre. Tendo em conta que alguns rotundos fracassos de audiência indicaram aos operadores que nem toda a TV de realidade é ouro, seria interessante que experimentassem outras variantes da televisão de realidade, para que, ao menos, o seu menu do horário nobre não fosse tão pobre e monocórdico.

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