Wilson Pickett A soul perdeu alma

Foi um dos cantores de música soul mais populares dos anos 60. Morreu anteontem, aos 64 anos

Wilson Pickett cantou Deus e o Diabo e, inevitavelmente, o segundo rendeu-lhe mais dinheiro. "Quer dizer, eu queria cantar gospel, mas também queria ganhar dinheiro", confessou à revista Rolling Stone, mesmo sabendo que trocar o gospel pela soul lhe podia custar a alma. "Quando se deixa Deus e se escolhe o Diabo, está-se condenado ao Inferno." Pickett, um dos mais populares cantores de música soul da década de 60, morreu anteontem à noite, vítima de ataque cardíaco, num hospital de Virginia, Estados Unidos. Tinha 64 anos. Onde quer que esteja, com quem quer que esteja, Deus ou o Diabo, não custa acreditar que é homem para fazê-los dançar.
Wilson Pickett foi o autor e intérprete de um punhado de êxitos que fazem parte do cânone da soul. O seu lugar é ao lado dos grandes - Otis Redding e Aretha Franklin - mas a sua música era demasiado insolente e áspera para convertê-lo numa figura tão consensual quanto aqueles. Ainda assim, quem gostar da soul um pouco mais crua, um pouco menos polida, e, sim, um pouco endiabrada, há-de sempre escolher Pickett sobre todos os outros. Como James Brown, a música de Pickett é visceral, pontuada por gritos.
"O que acontece com Wilson é que ele berrava de forma excelente, mas fazia-o com controlo", dizia ao Los Angeles Times, na quinta-feira, o produtor Jerry Wexler (que trabalhou com Aretha Franklin, Ray Charles, Bob Dylan e Dusty Springfield). "O James Brown gritava e era um grito, mas Wilson podia gritar notas. A sua voz era potente, como uma serra circular, mas nunca estava fora de controlo, era sempre melódica." O site allmusic.com sugere uma série de moods (temperamentos, estados de espírito) para definir a sua música, entre os quais "indisciplinado", "rude", "sensual", tudo isto com a melhor das intenções, claro.
A sua carreira atravessou quatro décadas, desiguais do ponto de vista criativo e de notoriedade. Mas o pico foi nos anos 60, época em que contribuiu para que o rhythm and blues atingisse a sua expressão soul, com uma série de êxitos imediatos, onde se destacam In the midnight hour ou The land of 1000 dances.
Nascido a 18 de Março de 1941, em Prattville, Alabama, era o mais novo de 11 filhos de uma família austera. A família muda-se para Detroit, tinha ele 14 anos, e é aí que Pickett, com a voz treinada em coros da Igreja Baptista e no grupo gospel The Violinaires, é descoberto por Willie Scofield, membro dos Falcons, que o convida a juntar-se à banda no final da década de 50.
A ira disciplinadora do avô, um pregador que lhe batera ao apanhá-lo com um exemplar do single jazzy e cómico Ain"t nobody here but us chickens, de Louis Jordan, não chegou para o afastar de sonoridades seculares. Pelo contrário: Pickett assina um êxito dos Falcons de 1962, I found a love, e toma o gosto à popularidade, ao ponto de iniciar uma carreira a solo. Assina contrato com a Atlantic Records em 1964, onde escala os tops, com a vitalidade das suas interpretações e a qualidade rítmica da sua música (aqui, terá sido fundamental o seu "estágio" na editora Stax, em Memphis, com Booker T & The MG"s).
É também nesse período prolífico - nove álbuns em cinco anos - que ganha a alcunha de Wicked Pickett (qualquer coisa como "perverso Pickett"). Há várias versões sobre a origem desse epíteto, mas há uma que lhe assenta melhor, contada pelo próprio: "Uma das secretárias da Atlantic Records apanhou-me a beliscar outra secretária", narrou ao Boston Herald em 1999. "Ela disse: "Meu Deus, você é mesmo perverso." Tive de estar à altura do nome depois de obtê-lo."
Com o advento do disco sound, a sua fama começa a declinar, na década de 70. Continuou activo nos palcos, onde gozava de uma reputação de artista incendiário, e o filme de Alan Parker, The Commitments (1991), onde uma inusitada banda soul irlandesa tem em Pickett o seu ídolo, lhe permite gozar de um certo revivalismo.
Em 1999, lançou o seu último álbum - e o primeiro em mais de uma década -, que lhe valeu uma nomeação para o prémio Grammy de melhor interpretação de rhythm and blues tradicional. O título desse disco dizia tudo: It"s Harder Now (Agora é mais Duro).

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