No labirinto de Jane Austen

O cinema sempre se deu bem com os livros de Jane Austen e sempre os procurou. As adaptações são inúmeras e existem desde tempos imemoriais. É fácil perceber porquê: é material seguro, são boas histórias e, apesar de se concentrarem num universo definido e especificamente codificado (a Inglaterra tão socialmente ritualizada de finais de século XVIII), parece que contêm sempre possibilidade de "reconhecimento" para qualquer público de qualquer época ou lugar. Vimo-lo bem em meados da década de 90, quando ocorreu, televisiva e cinematograficamente falando, o último "Jane Austen revival": foi "Persuasão", foi o "Orgulho e Preconceito" da BBC que "iconizou" Colin Firth em Mr Darcy, foi o "Sensibilidade e Bom Senso" de Ang Lee, a "Emma" com Gwyneth Paltrow e ainda um "Mansfield Park" de Patrícia Rozema que deu menos nas vistas.

Tratava-se, em qualquer caso, de baralhar e voltar a dar - tudo isto já fora filmado centos de vezes. É natural, portanto, que posto perante este "Orgulho e Preconceito" que agora estreia o espectador se sinta afligido por uma espécie de "déja vu": ok, cá vamos nós outra vez. Mas por acaso até vamos razoavelmente bem. É evidente que não se podem dar 1001 voltas a uma história de Jane Austen (pelo menos sem que ela deixe de ser uma história de Jane Austen), mas este "Orgulho e Preconceito" de Joe Wright (realizador, ao que podemos saber, talhado na televisão) consegue não apenas ser uma versão sólida e consistente como reunir alguns atributos que o tornam num pouco mais do que uma obra meramente correcta. Evita muito bem, por exemplo, a pecha tradicional deste tipo de filmes, serem um simples conjunto de "dicção + guarda-roupa" enquadrado num olhar de fascínio auto-complacente (que, na nossa memória, era o que o "Sensibilidade e Bom Senso" de Ang Lee era). Pelo contrário, é um filme espevitado, que se mexe, onde se sente movimento. Ajuda muito a caracterização das personagens, em especial a das irmãs Bennet (lideradas por uma Keira Knightley a tomar de assalto o lugar que foi de Winona Ryder há uma década e meia atrás), pouco presas de maneirismos de época e próximas de um estilo adolescente mais, digamos, intemporal. Ou a indolência de Donald Sutherland (Mr Bennet) e o registo voluntariamente exasperante, muito "lower class", de uma Brenda Blethyn (Mrs Bennet) que parece transplantada de um filme de Mike Leigh. E por aí fora, terminando num Mr Darcy (Matthew Macfadyen) porventura ainda mais baço, grave e desajeitado do que o de Firth.

Também ajuda o facto de não haver muitas lantejoulas. Há um registo "popular" que se calhar está mais de acordo como o espírito da história de Jane Austen do que outras versões dadas a reconstituições brilhantes e luxuosas (os cenários, por exemplo, exibem uma espécie de naturalismo que nunca os transforma em "casas-museu"). E, talvez seja o pormenor decisivo, a "mise-en-scène" de Wright encontra boas soluções para traduzir os labirintos de classe que são o centro da história - há até um plano-sequência, particularmente surpreendente e inventivo, que durante uma festa une e desune as personagens umas às outras, como se fosse questão de expor, visualmente, o remoinho de aparências e conveniências que é o verdadeiro sangue de "Orgulho e Preconceito". A espreitar, sem medo.

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