Os homens da cabeça rapada

Depois de ter filmado para televisão dois importantes musicais ("Company" de Sondheim e "Cabaret"), Sam Mendes fez a sua entrada de leão no cinema com "Beleza Americana", um ensaio sobre as fragilidades da instituição familiar e o seu valor metonímico, tendo, com "Road to Perdition", uma segunda obra pouco convincente, demonstrado uma errática tendência para seguir modelos do cinema clássico sem entender a dinâmica dos géneros.

"Máquina Zero"/ "Jarhead" começa por se reclamar da estrutura do filme de guerra, construindo, inclusive, a "acção" sobre "clichés" narrativos reconhecíveis - como o do sargento disciplinador - para depressa se dispersar numa visão quase abstracta do vazio de conflito, que, de certo modo, encaixava bem numa dimensão histórica particular: a Guerra do Golfo, como lugar de anti-heroicidade. A questão central desta ficção bélica reside num ataque à inutilidade de uma guerra sem sentido, nem objectivos, sem inimigo visível, nem justificação plausível para a criação de um "espírito de corpo".

Só que, a esta vacuidade corresponde um tempo cinematográfico que pretende incutir no espectador um igual sentido de sensaboria, acabando o filme por arrastar-se ao sabor de episódios repetitivos destituídos de qualquer função narrativa. Enquanto ensaio sobre a inoportunidade da guerra, "Máquina Zero" parece prescindir da acção; enquanto panfleto, anti-guerra incorre no erro grosseiro de não passar dos estereótipos mais óbvios.

Não existem personagens, apenas bonecos articulados que cumprem função de corpo presente, procurando disparar o primeiro tiro, como prova justificativa de um esforço em vão. Mas ao contrário, por exemplo, de "Full Metal Jacket" de Stanley Kubrick, em que a violência irrompe, em abstracto, para colmatar os absurdos de situação, ou de "Thin Red Line" de Terrence Mallick, em que a proximidade do inimigo invisível se resolve pela adopção de um grafismo exemplar, deslocando a guerra para o interior do indivíduo, Sam Mendes opta pelo folclore das praxes, dos castigos físicos, de um jogo sado-masoquista de interacções extáticas.

Nesta descarga de inútil adrenalina repousa, mesmo assim, a possível força do filme: adaptado de uma autobiografia com o "autobiografado" na personagem central, Swoof (interpretado por um tenso e complexo, Jake Gyllenhaal), o filme opera com a sua rigidez, a sua pose de incompreensão, sujeito a poderes discricionários e a uma estratégia de não comunicação, uma intervenção interessantes sobre os limites volitivos do indivíduo. Por isso, a violência física, exercida pelos camaradas e pelo estereotipado sargento (Jamie Foxx em piloto automático) aponta para um forte grau de insanidade, de febril delírio, dominando actos e pensamentos. O diálogo substitui a acção numa sequência patética de falhas sucessivas. O deserto físico estende-se metaforicamente à representação do mundo como manicómio, um "ninho de cucos" perdidos sem bússola, nem relógio.

Dir-se-á que tal "perdição" convém a uma guerra como a do Golfo, que o tempo das heroicidades, que marcou o género, sobretudo funcional, durante a II Guerra, enquanto peça fulcral no esforço de propaganda, deixou de fazer sentido. Aquilo a que "Máquina Zero" se arrisca, porém, é a querer representar o irrepresentável, sem optar pela abstracção radical, como "Thin Red Line" ou pela paródia desbragada, como "Mash" ou mesmo "Três Reis", se quisermos permanecer no espaço do mesmo pretexto contextual.

Aliás, o melhor deste exercício irregular sobre uma militarização impossível do indivíduo, passa pelo assombroso trabalho fotográfico de Roger Deakins, que dá conta da inutilidade da figuração: um realismo ingénuo e veloz em tons pastel e em contrastes marcantes, traçando silhuetas humanas sobre areias monótonas e infindáveis.

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