Isabel Pires de Lima O mandato da contestação

Desautorizada por duas intervenções de José Sócrates, a ministra tem agora em mãos uma revolta em que o improvável aconteceu: centenas de agentes de todas as áreas reunidos contra a sua política. O PÚBLICO faz uma radiografia
de dez meses de mandato. Por Vanessa Rato, Lucinda Canelas e Inês Nadais

Isabel Pires de Lima era deputada do PS há seis anos quando, em Março de 2005, se tornou ministra da Cultura. A escolha foi uma surpresa morna. Apesar de ser uma académica respeitada na área da literatura portuguesa dos séculos XIX e XX, em meia década no partido Pires de Lima fora uma parlamentar sem voz nos grandes debates da área. A sua capacidade de luta por um orçamento em época de contenção e o seu nível de conhecimento de organismos públicos e mecanismos de criação contemporânea eram incógnitas.
Apesar das reticências, seria difícil de prever que em dez meses de trabalho conseguisse o que raramente aconteceu em Portugal: um movimento de contestação articulado entre agentes de áreas que cronicamente coabitam de costas voltadas aos problemas umas das outras.
Ontem, até à hora de fecho desta edição, a petição Queremos Um Ministério Capaz (new.petitiononline.com/minist/petition.html), que começou a circular no domingo à tarde, tinha mais de 600 assinaturas. Profissionais do teatro, mas também da dança, da música, das artes plásticas, do cinema, do design, da arquitectura, da literatura e do ensino.
Depois de duas desautorizações em questões de peso como a criação da Fundação Casa da Música e a transformação da Colecção Berardo em Museu de Arte Contemporânea, medidas que tiveram intervenção directa do primeiro-ministro José Sócrates, Pires de Lima tem agora em mãos uma verdadeira revolta. O que já começou a levantar dúvidas sobre se sobreviverá à remodelação de governo comentada para depois das presidenciais.
Uma radiografia de dez meses de mandato:

Casa da MúsicaPires de Lima demorou só 27 dias a tomar posse do dossier da Casa da Música (CdM): a 8 de Abril, seis dias antes da abertura do equipamento, apresentou no Porto uma proposta de decreto-lei que os privados consideraram base viável para resolver uma questão pendente há mais de um ano. Mas, depois, foram precisos oito para dotar a CdM de um modelo jurídico. Foi também necessária a intervenção do primeiro-ministro para impedir a ruptura com os privados que, em Outubro, se declararam indisponíveis para participar na fundação nos termos definidos pelo ministério. A fundação é, assim, mais obra de Sócrates do que de Pires de Lima.

SubstituiçõesAs mudanças de chefia nos organismos afectos à cultura têm sido constantes e motivo de algum questionamento. Das primeiras, em Julho - quatro delegações regionais, Torre do Tombo (TT) e Instituto Português do Livro e das Bibliotecas - só uma foi saudada com entusiasmo: a de Silvestre Lacerda (TT).
No fim de Setembro, foi a vez do Instituto Português do Património Arquitectónico, do Instituto das Artes (IA), e da Biblioteca Nacional (BN). Ao apontar para estes cargos Elísio Summavielle, Jorge Vaz de Carvalho e Jorge Couto, Pires de Lima foi acusada de nomeações político-partidárias. Mas ainda houve mudanças no Instituto do Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM), na subdirecção do IA, na administração do CCB e, a mais recente, no Teatro Nacional Dona Maria II. Desde que a ministra assumiu funções, apenas dois dos directores dos principais organismos da cultura foram formalmente reconduzidos - Manuel Bairrão Oleiro, director do Instituto Português de Museus, e Ricardo Pais, encenador responsável pelo Teatro S. João. E apenas três - Pedro Dias (TT), Diogo Pires Aurélio (BN) e Elísio Cabral de Oliveira (ICAM) - tinham manifestado vontade de sair.

CCBA exoneração há muito esperada do presidente do conselho de administração dos últimos nove anos, João José Fraústo da Silva, e a sua substituição por António Mega Ferreira podia ter deixado Pires de Lima em estado de graça, fazendo até esquecer a entrada de José Sócrates na polémica da Colecção Berardo em cima da data-ultimato para a saída para o estrangeiro do mais importante espólio de arte moderna e contemporânea de Portugal. Depois da Expo-98 e bem relacionado com os circuitos empresariais e políticos, Mega Ferreira surge como a promessa de um CCB capaz de captar novos financiamentos e a regressar a dinâmicas perdidas. Mas apenas três dias depois sabia-se que António Lagarto seria afastado do Dona Maria com a polémica a instalar-se de imediato. Assim, o CCB poderá ficar em suspenso até à tomada de posse de Mega, a 13 de Fevereiro.

SubsídiosAs polémicas herdadas do anterior governo, a indefinição na direcção do IA (três meses para nomear dois subdirectores) e a necessidade de alterar os regulamentos de apoio às artes têm marcado as relações entre o ministério e os artistas.
A novela dos apoios ao teatro no Norte também foi motivo de tensão. Começou mal, com os resultados do concurso a serem homologados mais de três meses depois do prazo, passou por uma providência cautelar que praticamente paralisou o teatro na região, e acabou com uma juíza a sublinhar que o Estado nunca esteve impossibilitado de celebrar contratos com as 21 estruturas contempladas.
O atraso nos concursos pontuais para 2006, lançados no último dia do ano, também foi muito criticado, bem como a descida para quase metade do montante a atribuir a jovens criadores (de 3,3 milhões para 2 milhões de euros).

Hermitage em LisboaO anúncio, em finais de Outubro, de uma extensão do Museu Hermitage de São Petersburgo em Lisboa, em 2010, com exposições temporárias de seis em seis meses, fez notícia, mas deixou de pé atrás agentes do meio museológico. Perante as condições deficitárias em que funciona a maioria dos museus portugueses, a ideia dos custos envolvidos, face ao retorno, foi interpretada como uma fuga para a frente.

Faro Capital da CulturaPires de Lima recebeu uma Faro Capital Nacional da Cultura 2005 em crise. "As coisas estavam praticamente paradas antes da entrada em funções da senhora ministra", disse ao PÚBLICO o comissário, António Rosa Mendes, em período de balanço (28/12/05). "Sem o despacho em que me delegou competências, a capital não seria viável", disse, apesar de admitir que "esperava mais empenho político". Artistas e programadores falam de desorganização e de um atraso na preparação que não permitirá à Faro 2005 deixar raízes no tecido cultural algarvio.
A ministra só fará o seu balanço depois de analisar os relatórios.

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