Pina Moura, ética e lei

Pina Moura, ao defender-se escudando-se na ideia de que "a ética da República é a ética da lei", está apenas a dizer-nos que não precisa de ter consciência, apenas necessita de um bom advogado

"A ética da República é a ética da lei". Esta declaração de Pina Moura ao PÚBLICO sintetiza muito do que está mal na nossa cultura política e nos comportamentos sociais comummente aceites. Ela não revela apenas o carácter de um político particular, ou traduz eventuais lacunas legais: ela reflecte Portugal naquilo que ele é, gosta de ser e não quer deixar de ser.O que está mal com Pina Moura (ou com Manuel Pinho, ou com António Mexia) foi ontem lapidarmente sintetizado por António Barreto no seu "Retrato da Semana" e deriva das suas múltiplas incarnações: "de Joaquim Pina Moura, presidente da Iberdrola, de Joaquim Pina Moura, deputado socialista, de Joaquim Pina Moura, ex-ministro socialista e de Joaquim Pina Moura, ex-funcionário do BCP". Todas elas, como faz questão de recordar o próprio, não violam qualquer lei. É verdade - tão verdade como verdade imaginar que algum legislador poderia ter a imaginação de prever tão diferentes metamorfoses. Só que esse não é o ponto.
Numa República - como numa monarquia parlamentar democrática ou em qualquer regime democrático e liberal - a ética não se estabelece na lei: estão antes da lei e ultrapassa os seus limites naturalmente estreitos e precisos. A lei deve seguir critérios éticos, mas a ética não pode limitar-se ao que a lei prevê ou diz.
Infelizmente em Portugal nunca se entendeu esta diferença. Ou, pelo menos, nunca se entendeu que nem tudo tem de estar escrito na lei para fazer parte dos bons costumes que se recomendam na vida política e social. Em Portugal o Estado - e o Estado apenas reproduz, neste domínio, o que a sociedade lhe exige ou pede - entende que deve legislar sobre tudo, prever todas as situações e regular todos os comportamentos. O Estado - e a sociedade, nós todos - desconfia. Primeiro legisla, depois pergunta. Primeiro fiscaliza, depois pensa.
Este princípio da desconfiança é também o princípio da desresponsabilização. Nunca se encontram responsáveis porque nunca ninguém se sente responsável já que, acima de tudo e todos, pairam o Estado e "as leis". Duas abstracções que ninguém leva a tribunal.
Tem de ser assim? É isto um Estado de Direito? Formalmente é um Estado de Direito, mas isso também o era no tempo de Salazar: as leis eram cumpridas, mesmo sendo iníquas. Só que não tem de ser assim. O Reino Unido, por exemplo, não necessitou até hoje de ter uma Constituição para que todos soubessem como se comportar e cumprissem regras antigas mas não escritas. Não há golpes, nem obscenidades políticas, antes existe uma velha e entranhada cultura política que diz como todos se devem comportar. Quem viola tais regras, bem presentes no subconsciente colectivo, está condenado. Mesmo que nunca passe por um tribunal.
Por cá não. A lei manda, o Estado vigia, o cidadão especializa-se na arte de conhecer os labirintos da burocracia, as falhas da lei e as fragilidades de um Estado tão paquidérmico como ineficiente. Há sempre um "buraco" por onde passar, seja ele derivado da legislação redundante resultar contraditória, seja de o Estado ser representado por homens, como todos os seus defeitos e virtudes, incluindo o da venalidade.
Assim se vive, assim muitos se "desenrascam" - haverá palavra mais portuguesa do que esta? -, mas assim pouco se progride. Atrasamo-nos, essa sina secular...
É por isso que Pina Moura, ao defender-se proclamando que "a ética da República é a ética da lei", no fundo nos está apenas a dizer que não precisa de ter consciência, apenas necessita de um bom advogado.

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