Mauricio Kagel em Lisboa "O humor é uma forma de seriedade"

Em Portugal para dirigir a estreia entre nós do ciclo Rosa dos Ventos, o compositor argentino participa no projecto Paisagens do Teatro Contemporâneo

"Na Argentina era visto como um europeu, na Europa sou um sul-americano." Esta frase do compositor argentino, a residir na Alemanha, Mauricio Kagel (n. 1931) - personalidade com um papel relevante no âmbito da criação musical das últimas décadas -, espelha bem o conceito de relatividade geográfica e cultural que de uma forma ou de outra sempre marcou o seu percurso criativo. Esta ideia encontra-se também subjacente ao ciclo Stücke der Windrose (Rosa dos Ventos) que terá amanhã, às 21h30, a sua estreia em Portugal pelo Ensemble Musikfabrik, sob a direcção do próprio compositor, no Grande Auditório da Culturgest, em Lisboa. Hoje, às 18h30, Kagel dará uma conferência (em diálogo com António Pinho Vargas) acerca desta obra e do seu universo musical. A iniciativa integra-se no projecto Paisagens do Teatro Contemporâneo, uma co-produção entre o Teatro Nacional de São Carlos e a Culturgest."Para mim, que nasci no Sul, o Norte é quente e o Sul é frio. Para vocês, que nasceram na Europa, é ao contrário. O Sul é muito quente porque tem a África e o Norte é o pólo. Quando as pessoas vivem em diferentes regiões da terra, as direcções celestes são totalmente relativas", explicou o compositor ao PÚBLICO numa breve conversa telefónica. Convém ter presente esta relatividade na audição do ciclo, composto por peças dedicadas aos diferentes pontos cardeais, todas elas com instrumentação semelhante (clarinete, piano, harmónio, dois violinos, viola, violoncelo e contrabaixo), na qual apenas varia a percussão. "É uma espécie de folclore imaginário. Não trabalho com citações autênticas, mas invento uma música que tem aspectos similares ao folclore."
A colaboração regular com o Ensemble Musikfabrik tem permitido um amadurecimento interpretativo que nem sempre se encontra na música do nosso tempo. "Na música contemporânea, muitas vezes a estreia de uma obra é ao mesmo tempo uma despedida porque a primeira audição é também a última! Mas o trabalho regular com este ensemble excelente tem permitido fazer concertos com um nível altíssimo. Isto é muito positivo para a vida musical porque é preciso fazer a música contemporânea com as mesmas condições de qualidade que o repertório habitual", referiu Kagel.
Ao contrário de outros compositores da sua geração, que cultivaram posturas mais herméticas, Kagel sempre se preocupou com a comunicação: "Uma das coisas mais importantes é falar sobre a música e tentar aproximar as pessoas emocionalmente e intelectualmente às obras. O público conhece as obras do passado praticamente de memória. Grande parte do trabalho de percepção está feito pelo hábito. Na música contemporânea o processo é mais complicado. É por isso que faço uma conferência na véspera do concerto. A educação que recebemos leva-nos a pensar que a música é tão importante que não é preciso falar sobre ela, mas não é verdade. Esse trabalho de preparação não o podem fazer só os compositores. Necessita-se de todo um exército de pessoas dispostas a levar o público pela mão até ao concerto."

Compositor multifacetadoA residir na Alemanha desde 1957, Kagel tem desenvolvido uma actividade multifacetada como compositor, maestro, professor, ensaísta, realizador de filmes e autor de peças radiofónicas. Tem também um considerável número de obras de música absoluta, mas o seu lugar na história da música do século XX deve-se em parte ao seu papel pioneiro no âmbito do teatro instrumental e na introdução de uma nova dimensão gestual, crítica e humorística na música.
"O mais importante, quando se trabalha com meios distintos, é adaptar-se a eles e repensar o problema de uma maneira orgânica. Eu nunca fiz música para filmes. Fiz filmes. Tal como nunca fiz ópera com libretos literários, mas fui sempre eu a escrevê-los. Tentei sempre recomeçar da base. Não quero fazer disto um programa universal, mas, para mim, foi o caminho correcto".
Quanto à componente humorística presente em várias obras, Kagel refere que "o humor é uma coisa com a qual se nasce". "É talvez o elemento mais sério que temos. Os grandes humoristas foram moralistas. Todos os grandes que fizeram do humor a sua profissão foram tremendamente éticos. Penso em Chaplin, por exemplo. Para mim o humor é uma forma de seriedade. Há que entendê-lo dialecticamente."
A seriedade é também um valor essencial para os que pretendem enveredar pelo caminhos da criação: "O mais importante para um compositor jovem é entender que tem que escrever o que ele quer e não o que a moda lhe manda. Quando se é sincero, o resultado é autêntico. Quando se tentam imitar coisas que têm êxito noutro lado, o tempo é inexorável."

Encontro com Mauricio KagelLISBOA Pequeno Auditório da Culturgest. Hoje, às 18h30. Entrada livre.

Stücke der Windrose de Mauricio Kagel
Ensemble Musikfabrik
Mauricio Kagel (direcção)
LISBOA Grande Auditório da Culturgest. Amanhã, às 21h30.
Bilhetes a 18 euros.

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