Walter Freeman foi o grande apóstolo da lobotomia nos Estados Unidos

Nos EUA, realizaram--se cerca de 50.000 lobotomias, numa altura em que os hospitais estavam a abarrotar de doentes

O neurologista norte-americano Walter Freeman viajou incansavelmente pelos Estados Unidos a divulgar a lobotomia, a técnica que desenvolveu baseada na leucotomia de Egas Moniz. Entre 1936 e 1950, quando começaram a surgir as primeiras opções de tratamento farmacológico, ter-se-ão realizado cerca de 50.000 lobotomias. É difícil dizer quantos terão beneficiado desse tratamento, porque nunca foram realizados ensaios clínicos e comparados os resultados desta intervenção com outras intervenções, mas muitas tiveram resultados desastrosos. Rosemary Kennedy, irmã do Presidente John F. Kennedy, foi um dos casos famosos. Mas até crianças foram operadas, por médicos sem formação específica, a quem Freeman ensinava a usar um instrumento idêntico a um picador de gelo, e um aparelho de choques eléctricos, que funcionava como anestesia barata.
O picador de gelo era introduzido no cérebro do paciente através dos olhos, passando por trás do globo ocular, e depois movido para os lados, para destruir as ligações de matéria branca do cérebro. Por vezes, era atingida uma artéria, e podia surgir uma hemorragia mortal. Foi isso que aconteceu em 1967, quando Freeman realizou a sua última lobotomia: morreu-lhe uma paciente que operava já pela terceira vez, e foi-lhe retirada a licença para exercer medicina.
O nome de Walter Freeman está indelevelmente ligado aos abusos que fizeram da lobotomia sinónimo de um tratamento desumano na cultura popular. É na lobotomia que se inspirou Voando sobre Um Ninho de Cucos, um romance que resultou num filme com Jack Nicholson, e também o filme Frances, com Jessica Lange, de 1982.
"Nenhuma outra intervenção deu origem a tanta criação literária", comenta o neurocirugião João Lobo Antunes, que já por várias vezes escreveu sobre Egas Moniz. "Não há nenhuma oferta terapêutica com pior reputação. Nalguns casos é justificado, noutros é falseado."
A campanha desenvolvida pela norte-americana Christine Johnson, a neta de uma mulher que foi lobotomizada, para que seja retirado o Prémio Nobel a Egas Moniz, é presa desta mistura de razões válidas e de incompreensões. Não só sobre o investigador português, como sobre o próprio Freeman. "A psicocirurgia tem uma história complexa, mas o revisionismo histórico esquece as condições em que se tratavam as doenças mentais. Havia mais de 400.000 doentes mentais internados nos Estados Unidos; só num hospital da Geórgia havia dez mil pessoas", lembra Lobo Antunes.
O objectivo de Freeman era administrar um tratamento que permitisse mandar para casa grande número destes pacientes - "a lobotomia manda-os para casa" era o seu lema, recorda o jornalista Jack El-Hai, no livro Lobotomist, publicado no início do ano, e no qual conta a história da lobotomia nos EUA e de Walter Freeman (que manteve registos de ter feito 3439 lobotomias). Foi só a partir de 1952, quando foi introduzido o primeiro medicamento antipsicótico, que as lobotomias começaram a deixar de ser praticadas.
O médico de Washington, que ocupou vários cargos em associações de psiquiatria e neurologia nos EUA, além de ter sido feito correspondente estrangeiro da Academia de Ciências de Lisboa, em 1948, quando a capital portuguesa acolheu o Congresso Internacional de Psicocirurgia, percorria os Estados Unidos a fazer operações e a divulgar a técnica.
A campanha pela lobotomia revelava as suas piores características. "Chocar os colegas tornou-se uma fonte de prazer para ele", escrevia El-Hai, num artigo sobre Freeman, publicado em 2001 no jornal The Washington Post. "Adorava contar que tinha feito desmaiar um professor emérito de neurologia da Universidade de Columbia durante uma demonstração e que tinha feito vomitar estudantes de Medicina em Inglaterra." Nunca descurava chamar a atenção dos meios de comunicação, e aparecia muitas vezes nas capas de jornais e revistas, como um número da Time de Novembro de 1942.
É fácil pensar em Freeman como um monstro, e era assim que Jack El-Hai pensava quando começou a fazer pesquisa para o livro. Mas percebeu que a sua história não era assim tão simples.
"Quando comecei a escrever, pensava em Freeman como um monstro, ou no mínimo como um médico que trabalhou nas franjas do admissível. Mas, à medida que fui absorvendo o conteúdo da montanha de diários, correspondência, artigos, livros e registos de pacientes que ele deixou na sua longa carreira de neurologista e psiquiatra, comecei a vê-lo de forma diferente", diz El-Hai no site de promoção do seu livro (http://www. thelobotomist.com).
"Compreendi que muitos dos seus colegas e pacientes o respeitavam. Vi provas de estado terrível dos serviços psiquiátricos nas primeiras décadas do século XX e do desespero de muitos médicos e doentes. Li algumas cartas surpreendentemente eloquentes dos pacientes lobotomizados de Freeman e dos seus familiares. Gradualmente, compreendi que, pelos padrões da altura, a lobotomia produzia resultados que podiam ser entendidos como melhorias. Walter Freeman foi o produto do seu ambiente, do seu impulso para inovar, e dos seus demónios pessoais."

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