Shaum of the dead brit zombie

Todos os subgéneros do filme de terror (para falar só deste) contêm em si mesmo os germes da sua auto-paródia. Vivem de regras e códigos que se repetem de filme para filme, numa repetição que dá substância à própria existência do género ou subgénero, e é por isso que falar dum "filme de zombies" (ou aparentado) que seja "auto-paródico" e "auto-referencial" se arrisca a ser um pleonasmo. Os filmes de John Carpenter e George Romero mostram bem esta consciência, interiorizada mais do que exibida (e por isso são filmes de género, não "pastiches" de género).

É pensando nisso que, quando nos aproximamos de "Shaun of the Dead", um filme inglês que o Cineclube de Terror de Lisboa programou para hoje e amanhã no cinema King, que assumidamente quer "parodiar" o género do "zombie movie", caricaturá-lo e usar os seus códigos e procedimentos para suscitar o riso mais do que outra coisa, nos aproximamos desconfiados. Mas a verdade é que sendo um "pastiche", um "cartoon", um "pleonasmo dum pleonasmo", também não é uma macaquice à Mel Brooks. E consegue, será mesmo o que tem de mais interessante, um singular golpe de rins: depois de passar meio filme a "desmontar" o "filme de zombies" Edgar Wright ocupa a outra metade a "remontá-lo", à medida que os efeitos caricaturais vão cedendo o lugar à reiteração das situações básicas do género.

E quando o filme chega ao seu clímax narrativo (um grupo de personagens cercado num "pub", como em Romero ou na 13ª esquadra de Carpenter ou na matriz de ambos, o "Rio Bravo" de Hawks) conseguiu transformar-se, como quem não quer a coisa, num verdadeiro "filme de zombies" (ou seja, sério), recortado e isolado algures dentro da caricatura.

Mas mesmo no que é mais óbvio (a "desmontagem") Wright demonstra uma certa argúcia. As personagens, de certa maneira, são "zombies" sem o serem (ou antes de o serem) - ou porque Wright as filma usando enquadramentos típicos do género (as pernas cambaleantes de Shaun recém-levantado da cama), ou porque mostra as ruas da Londres suburbana como uma parada de "zombies" (alguns planos do princípio do filme podiam vir de um Ken Loach que tivesse sentido de humor). Depois, porque atrasa durante bastante tempo a entrada do "filme de zombies" explícito: como se isto fosse "As Jóias da Castafiore" a meia-hora inicial vive de "ameaças", a "intriga" parece que vai a entrar a qualquer momento (como no plano do homem que bate à porta do "pub": é um zombie? Não, é só um bêbedo) mas é sempre rechaçada.

A certa altura pensamos que é isto o filme: filmar as vidas desinteressantes de londrinos suburbanos que podiam ser personagens de uma qualquer "britcom" usando efeitos e acabamentos importados do "filme de zombies" (depois não é isto e se calhar ainda bem). É verdade que a faceta "britcom" é a mais frágil, e que nalguns momentos "Shaun of the Dead" parece viver demasiado em estilo "comédia de situação", e em particular o final (já resolvida a crise) resulta bastante forçado (e desengraçado). Mas há "wit" e há verve, e excelentes piadas - a que mete o segundo disco dos Stone Roses (a certa altura as personagens recorrem a discos de vinil como arma de arremesso contra os mortos-vivos), para iniciados em música pop, é das melhores do ano.

"Shaun of the Dead" é já um pequeno filme de culto. E um coleccionador de prémios: foi considerado o melhor filme de terror da Academia de Filmes de Ficção Científica Fantasia e Terror dos EUA, teve o argumento premiado com o Bram Stoker Awards e com o British Independent Film Awards e o prémio Empire para o melhor filme britânico.

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