Quatro ideias por minuto

Tínhamos deixado Arnaud Desplechin com "Esther Kahn" (2000), filme "nórdico" tutelado pelo teatro de Ibsen, rodado numa Inglaterra estilizadamente cinzenta mas reminiscente de outras "visões de Inglaterra" geradas pelo cinema francês (mormente as de Truffaut em "Fahrenheit 641" e "Les Deux Anglaises et le Continent"), e protagonizado por uma actriz americana, Sumner Phoenix.

Depois de "Esther Kahn" houve um filme que não vimos e não passou por cá, "Léo, en Jouant Dans La Compagnie des Hommes", onde Desplechin trabalhava - ainda o teatro - a mesma peça de Edward Bond que Neil Labute adaptou em "In the Company of Men". Quando reencontramos o cinema de Desplechin neste "Reis e Rainha", temos a surpresa de o encontrar emerso num romanesco pícaro e cheio de detalhes (Desplechin fala de "quatro ideias por minuto"), profundamente "escrito", e até "caloroso", mesmo se as temperaturas são variáveis e a amplitude térmica bastante larga.

Resumidamente, o filme centra-se em duas personagens, Nora (Emmanuelle Devos) e Ismael (Mathieu Amalric) que se cruzaram no passado (tiveram uma relação afectiva) e depois se perderam de vista. Agora cada um tem os seus problemas. Nora tem o pai (o monumental Maurice Garrel) a morrer, e procura um pai substituto para o filho, Elias - o verdadeiro pai morreu quando ela estava grávida e ela não se sente em condições de ser a mãe que Elias precisa. Lembra-se então de Ismael, a quem deseja entregar o filho para que ele o adopte. Só que Ismael está metido nos seus próprios palpos de aranha: tem, literalmente, que provar que não é louco, depois de ter sido internado num manicómio "por solicitação de terceiros", isto é, contra a sua vontade ou autorização.

O reino destes "Reis e Rainha" começa por ser o da montagem paralela. Desplechin, que diz que isto é como se fosse entrelaçamento dos dois filmes das personagens, segue um e outro nas suas aventuras e desventuras, numa narrativa sempre "cheia" e enérgica, balançando entre géneros e registos diferentes. Há o burlesco e o "gag", sobretudo a cargo de Amalric, sozinho num manicómio com os seus fantasmas. Mas como "Reis e Rainha" é uma espécie de montanha-russa, desafia constantemente as leis da gravidade, sobe e desce, ora é pesado ora é leve.

Emmanuelle Devos, que se calhar tem aqui o papel da sua vida, está no centro de três momentos melodramaticamente fortíssimos: o encontro, onírico mas filmado como se não fosse, com o falecido pai do seu filho; o longo "flashback" por "kafkianos" corredores burococráticos, quando ela tenta provar que o pai da criança não é "incógnito" (simplesmente "não existe", morreu), e perto do fim a leitura da carta deixada pelo pai (dela) depois de morrer, que é como aqueles momentos dos romances em que um "segredo terrível" é revelado. Pontuado por imagens e referências literárias à antiguidade clássica e às suas idealizações, "Reis e Rainha" acaba, "todo em doçura", com um belíssimo e simplíssimo "epílogo" onde, como nos diálogos dos velhos gregos e dos velhos romanos, um "mestre" prepara o seu "discípulo" para o mundo. É um belíssimo filme, sempre a trabalhar em "camadas", delirantemente inventivo, capaz de conciliar a maior familiaridade com a maior estranheza (ou respectivas impressões), e onde se sente da parte de Desplechin um gozo pela narrativa e pela efabulação "folhetinesca" que é impossível não partilhar. De Devos já falamos, mas não esqueçamos Amalric, a redescobrir, com a sua cara de sapo simpático, a queda para um "burlesco psicológico" em que está completamente à vontade. E não ignoremos o pequeno papel de Deneuve nem, sobretudo, a estarrecedora presença de Maurice Garrel.

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