O homem invisível

Com uma já longa carreira cinematográfica, da qual se destaca "A Ilha" (2000), história de amor de contornos sado-masoquistas, e "Primavera, Verão, Outono, Inverno...Primavera" (2003), Kim Ki-Duk desenvolve agora em "Ferro 3" as coordenadas surreais do amor louco, com um poderoso sentido visual e uma inteligência rara.

O título instrumentaliza o vocabulário do golfe e usa o nome de um taco que assume no filme o carácter de metáfora da violência e acaba por simbolizar o valor de arremesso no contexto da violência contida, figurada enquanto impossibilidade comunicativa. O ponto de partida é artificioso: um jovem solitário e inadaptado (Sun-hwa) distribui panfletos que cola às fechaduras das portas e, quando se assegura de que os mesmos não foram retirados, entra nas casas e partilha o espaço habitacional como forma de integração num quotidiano que não tem. Ao arrumar objectos, tomar duche, consertar balanças que não funcionam, ou lavar manualmente roupa suja, consegue um sentido de pertença, povoa um "lar" desconhecido com a sua própria capacidade de viver a vida de outrem, como se fosse a sua, no distanciamento radical do desdobramento de personalidade num vazio representativo.

Numa das incursões pelas casas abandonadas, encontra uma jovem, Tae-suk, vítima de violência doméstica e gera-se uma cumplicidade fantasmática entre o "casal", baseada no poder aleatório da aliança tácita entre figuras de um mesmo mundo de silêncio: os protagonistas nunca falam entre si (excepção feita ao momento de declaração "unilateral" do amor, por parte da personagem feminina); o marido joga o jogo da sedução, ainda pela violência de uma imposição dos afectos, alienando-se do "trio" na sequência fulcral do abraço, com a presença oculta do terceiro elemento (invasor) a dominar o plano. À memória cinéfila vem-nos o belíssimo "Vive l"Amour" (1994) de Tsai Ming-liang, também centrado na incomunicabilidade entre os amantes, no silêncio revelador, embora transposto para a dimensão do choro convulsivo, que aqui se evita.

Sun-hwa aposta na sua "invisibilidade", criando uma coreografia da ausência, sobretudo nas cenas da prisão, quando se "evade", ocultando-se na sombra do que o procura. Este jogo de escondidas com o real passa pela procura dos pontos mortos da visão, pela demanda do ângulo perfeito para se não existir, permanecendo omnipresente. Quando os "amantes" se unem para penetrar nas casas, consuma-se uma relação pela impossibilidade, uma junção de frustrações, encenada graficamente pela atenção às fotos e à decoração fragmentada dos painéis expostos nas paredes: o cenário ganha, assim, poderes de reflexos de um olhar conjuntural sobre o indizível, sobre o que escapa à palavra.

No episódio do jogador de boxe, ganha corpo a ameaça metafórica do mundo sobre o amor "proibido": a luva exposta na parede rima com o taco de golpe que dá nome ao filme; a união improvável confirma-se em perda, prolongando-se pela prisão e pelo castigo com as bolas de golpe, substitutivas de balas que se elidem de um conflito codificado em figuras de uma pequena tragicomédia oriental, variação mínima sobre manobras de marionetas. Joga-se com códigos de intriga policial, mas constrói-se uma fuga abstractizante ao género.

Esta caracterização das figuras ficcionais, como títeres de uma representação rarefeita, explica a sensação de vazio que se instala: as personagens não existem, de facto, são aéreas, "voam" nos intervalos dos espaços, alimentam-se de sinais, sem carnalidade, mas estabelecendo uma rede de sentidos. O amor aparece também pela proibição do amor, entre "fantasmas" de um universo sem alma. Por isso, as tacadas de golfe se fazem no vazio, presas por um fio ou limitadas por um alvo delimitado, apenas se desprendendo por acidente ou como manifestação de raiva pela recusa do não-dito.

O amor platónico, entre sombras projectadas no nosso desejo de dar forma narrativa ao que é só sugerido, institui-se em razão de existir de uma concepção, simultaneamente, absurdista e hiperrreal, do cinema.

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