A imagem vazia

Estamos diante de uma obra que aparece como um primeiro filme. Nós ficamos assombrados pela sua qualidade. Sendo uma primeira obra, o espanto é desmedido. E a crítica nacional e internacional tem vindo a multiplicar-se em rasgados elogios. Contudo, esta película tem a força das obras que partem de uma ideia simples. Estranhamente simples, comovedoramente simples.

O que vemos é um pai ainda jovem que se deixa conduzir por uma obsessão: recuperar a filha pequena que desapareceu. E para isso ocupa literalmente uma cidade - Lisboa - esquadrinhando-a em todos os sentidos. A esta busca desesperada contrapõe-se a sua actividade como actor de teatro. O que nos permite ver a outra face do protagonista: de um lado, a nudez do desespero, do outro, o puro artifício.

Para o êxito deste filme contribui a presença impressionante de Nuno Lopes. De certo modo, ele não exprime: é. Nuno Lopes é um bloco de dor, a face obsessiva de um homem. E nós podemos dizer que este homem é qualquer homem, e todos os homens: a simples condição humana. E esta simplicidade é-nos também dada pela belíssima música de Bernardo Sassetti. A juntar a uma equipa sempre tão extraordinária essa excelente artista que é a Beatriz Batarda. Aparentemente mais distante do drama de uma criança desaparecida, ela é a expressividade nua, aquela que se fere e magoa para mostrar a força intensa do sofrimento, o que nele há de indizível e insuportável.

Mostrando Lisboa, uma Lisboa glauca e monótona, de um anonimato nómada, Marcos Martins cria um curioso estatuto da imagem: a imagem vazia. Por outras palavras, vemos o que não está lá, a criança desaparecida, mas que organiza emocionalmente todo o espaço. O filme tem este mérito: ensina-nos a ver como o vazio está no interior da imagem. Não é uma imagem sem objecto. É um objecto que se retraiu até desaparecer, até ser absorvido pelo visível supérfluo do mundo quotidiano.

Os comentadores têm dito que se trata de alguém que procura a filha. De certo modo, têm razão. Mas eu iria mais longe. Trata-se de filmar literalmente a obsessão. De tal modo é assim que, quando se supõe que finalmente a rapariga foi encontrada, o pai parece estranhamente paralisado. Apetece-nos gritar "Corre!", mas ele como que recua e se retarda. Como se a sua vida já só tivesse sentido na demanda de um ser que nos escapa e na forma obsessiva como todos os dias, todas horas, todos os minutos, são dominados por essa procura insensata.

Alice acaba por ser o nome que diz o vazio e as formas sofridas do seu preenchimento. E todos os outros acontecimentos (que o filme sugere de uma forma subtil e inteligente) são apenas restos, detritos, destroços, fragmentos de um longínquo naufrágio.

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