Flanger do outro mundo

Sentido lúdico e apetite pelo risco. A dose exacta de sobriedade e de dinamismo em palco. Vontade de estabelecer vínculo com o público, oferecendo-lhe sons que ecoam na sua memória (jazz da primeira metade do século XX, quando o género ainda não era apreendido como tal), e fazendo-o de maneira criativa, procurando o ângulo inesperado, a combinação improvisada ou prolongando motivos até ao infinito. Parece a história de um concerto perfeito. Foi o que aconteceu, quinta-feira, no Lux, em Lisboa. Em palco, os Flanger, que acabaram de lançar o brilhante álbum Spirituals. Os mentores do projecto, os alemães Uwe Schmidt e Burnt Friedman, conhecidos por muitos outros projectos das áreas electrónicas, ocupam-se do digital e dos computadores. À sua frente estão três neozelandeses: o vocalista e guitarrista Richard Pike, o seu irmão, Laurence, na bateria, ambos com ligações ao jazz e rock, e no clarinete, Hayden Chisholm, conhecido pelo trabalho com a artista plástica Rebecca Horn.
Como a própria música dos Flanger, parece uma união inverosímil, mas resulta de maneira admirável. Com quatro álbuns editados, o concerto centrou-se em Spirituals, disco de canções excêntricas e de balanço viciante, que respira à sua maneira a época de ouro das big bands, a música de Django Reinhardt ou a herança da cultura de Nova Orleães, berço do jazz e tronco das ramificações ao qual o género tem sido sujeito.
Na recriação de canções como Crime in the pale moonlight, How long is the wrong way? ou Down the river instaura-se um ambiente radioso, com a voz e guitarra de Pike e o clarinete de Chisholm disputando as atenções, suportados pelo balanço insinuante dos ritmos. Mas não há só canções. Quando são abordados temas de outros álbuns, o colectivo liberta-se e parte rumo ao desconhecido, confiando no instinto, propondo autênticas mantras sonoras, num misto de hipnose e psicadelismo.
Usualmente há um motivo instrumental que institui, lentamente, a acção. Os restantes músicos seguem-no, rodeiam-no, os sons digitais transformam-no, a bateria carimba o ritmo, acelera-o, a guitarra pulsa, quando tudo parece desvanecer-se, há o clarinete que recomeça tudo. Agora mais rápido, ainda mais intenso. A hipnose instala-se. Há olhos que se fecham. Cabeças que abanam vigorosamente. Do Lux viaja-se para outro lugar. Batem-se palmas. Grita-se. Pede-se mais. Grande concerto.

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