A Mulher que Viveu Duas Vezes

Envolvido pela espiral da vertigem, o espectador é novamente, em A Mulher que Viveu Duas Vezes, o voyeur privilegiado, ao acompanhar o desespero de um homem apaixonado por uma mulher irreal. James Stewart e Kim Novak são os protagonistas de uma intriga psicológica e complexa, conduzida pelo olhar de Alfred Hitchcock.

Por Ana Filipa Gaspar

Um thriller ou um romance obsessivo? Vertigo/A Mulher que Viveu Duas Vezes (1957) não se define facilmente. Hoje é considerado pela crítica e pelo público a "obra-prima absoluta" de Alfred Hitchcock, mas este complexo filme não foi recebido como tal na sua estreia, no final da década de 60, e Hitchcock ressentiu-se com o seu fracasso. Contudo, o tempo engrandeceu a história do ex-polícia que sofre de vertigens e se apaixona por um fantasma. O realizador Martin Scorsese testemunha-o quando, no documentário Obsessed with Vertigo (incluído no volume publicado amanhã), afirma que, "ao longo dos anos", o filme exerce uma crescente atracção, "como se fosse um remoinho de obsessão".Baseado num romance dos escritores franceses Boileau e Narcejac, o 45.º filme de Alfred Hitchcock intitulava-se, inicialmente, From Amongst the Dead, tradução literal do título do livro. No entanto, a Paramount recusou o título e, assim, surgiu Vertigo, ou seja, "vertigem", que o dicionário apresenta como sinónimo de "uma sensação de tontura... sentir a cabeça a nadar... no sentido figurativo, um estado em que tudo parece ser engolido por um remoinho de terror". Mas como traduzir este estado mental e psicológico para o grande ecrã? A resposta do realizador foi uma técnica inovadora que combina zooms com travellings para trás e permite ao espectador experimentar a angústia da vertigem, ao distorcer a imagem da realidade.
A espiral da vertigem envolve o público desde os primeiros segundos do filme, devido ao genérico abstracto de Saul Bass e à música inspirada em Wagner e Mozart do compositor Bernard Herrmann. E é reforçada continuamente pelas imagens do filme, como o caracol no penteado de Madeleine/Carlotta ou as formas circulares no tronco da árvore centenária. Em simultâneo, a intriga constrói uma espiral do tempo, na qual a enigmática Madeleine (Kim Novak) parece mergulhar, arrastando Scottie (James Stewart) atrás de si.
A Mulher que Viveu Duas Vezes foi o quarto e último filme em que Hitchcock e James Stewart colaboraram. Nele, Stewart transforma-se em John Scottie Ferguson, um ex-polícia que é confrontado com uma fobia incurável (o medo das alturas) e, quase ao mesmo tempo, se apaixona perdidamente por uma mulher. Mas essa paixão revela-se impossível (a amada morre) e torna-se numa obsessão necrófila.
"James Stewart estava apaixonado por um sonho, por uma mulher que nunca existiu", explicou Kim Novak, numa entrevista em 1981. Referia-se a Madeleine, a personagem que interpreta e que é um reflexo de um fantasma, Carlotta Valdés, cujo destino fatídico parece repetir-se na vida da sua descendente. Quando Madeleine desaparece, Novak reaparece como Judy, uma mulher menos irreal e cativante. Contudo, quando Scottie a vê, percebe de imediato a semelhança de ambas e não resiste à tentação de transformá-la em Madeleine, tal como o próprio Hitchcock fazia com as suas actrizes belas e loiras.
Na verdade, Kim Novak não foi a primeira escolha do realizador para interpretar a dupla Madeleine/Judy. O papel foi pensado para outra loira, Vera Miles, que Hitchcock queria tornar célebre graças a este filme, mas a actriz engravidou e não pôde integrar o elenco. Novak surgiu como alternativa mas o seu trabalho não agradou completamente ao realizador, para quem a actriz tinha demasiadas ideias fixas. Por isso, divertiu-se com o facto de a atirar várias vezes à água enquanto filmava a cena da tentativa de afogamento.
A Mulher que Viveu Duas Vezes encontra-se no limiar entre o real e o universo onírico. Daí que a luminosidade desempenhe, paralelamente às imagens criadas por Bass e à música composta por Herrmann, uma função crucial no filme - quando a imagem fica escura ou desfocada, os personagens são envolvidos pelo passado e pelos seus fantasmas. Esta técnica prende o espectador, mais uma vez voyeur, à intriga e permite a identificação com os sentimentos do protagonista. E o que começa como um thriller psicológico, termina como uma trágica história de amor.

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