Greta Garbo A mulher que queria estar só

Abandonou a carreira aos 36 anos, mas é um dos mitos do cinema.
Faz hoje 100 anos que, em Estocolmo, nasceu Greta Garbo. Por Mário Jorge Torres

Mais do que uma actriz, Greta Garbo transformou-se num dos mitos maiores do século XX, semi-deusa de um Olimpo de luz e de sombras: alta, andrógina, de rosto anguloso que atraía a luz, salientando uma fotogenia singular, Garbo incorporou o mistério de um rosto e de um corpo sem tempo, nem espaço. À sua volta gravitaram outras estrelas, mas nenhuma atingiu a mesma qualidade incorpórea e evasiva, fora do isolamento que para si criou, como na bailarina russa de Grande Hotel (1932), com o seu famoso grito de alma: "Quero estar só."Criou-se ao lado do mito um outro de que os veículos feitos por medida para "a Divina" (designação que extravasou do título do filme de Sjöstrom, The Divine Woman, de que, ironia trágica, apenas se conservam poucos minutos), seriam maus filmes. Nada de mais falso: depois do primeiro grande papel, A Lenda de Gosta Berling (1924), do seu Pigmaleão, Mauritz Stiller, passa pela UFA, em Rua sem Sol (1925) do grande Pabst, para se estrear em Hollywood, no excelente A Torrente de Monta Bell, numa espanhola estilizada, a cunhar o mito da beleza distante e inalcançável.
Depois desta entrada de leão na indústria das imagens, a Meca do cinema quase se limitou a gerir o capital da sua extraordinária capacidade de estar no plano, muito mais moderna do que as outras divas da décadas: a óbvia Clara Bow, a expressiva Gloria Swanson ou a datada Pola Negri. Olhava, usava subtilmente um sorriso ambíguo de Gioconda nórdica, resistia a trejeitos explicativos, próprios da estética do mudo. Do período que antecede a chegada do sonoro, ficam, sobretudo, uma impressiva e forte imagem de mulher, em O Espírito e a Carne (1926), de Clarence Brown (que virá a ser o "Garbo director", em mais três películas), e uma maravilhosa Anna Karenina, em Love (1927) de Edmund Goulding, a iniciar um ênfase trágico, que vai ser a sua imagem de marca.
Embora se especializasse em papéis exóticos de estrangeira, a MGM vai adiar o mais possível a sua entrada no sonoro, temendo o forte sotaque e o timbre masculino da sua voz. Quando o faz, numa adaptação muito discutível e muito datada de Eugene O"Neill, em Anna Christie (1930), acompanha o lançamento com uma forte campanha publicitária, "Garbo Talks" e a sua primeira réplica ("Dá-me um whiskey com ginger ale e não sejas sovina") fica logo famosa. A Garbo passara o teste e instituía a sua voz "viril" e um pouco rouca como parte integrante da sua persona fílmica.
E, se fora moderna na década de 20, mantém nos anos 30 uma pompa declamatória que aumenta o mistério, cada vez mais "divina", cada vez mais só, com inúmeras aventuras (masculinas e femininas), mantidas numa sombra omnipresente. Contracena, como cortesã de luxo, com o "rei" Clark Gable no fracassado Susan Lennox: Her Fall and Rise (1931) e inicia com Mata Hari (1931), de George Fitzmaurice, uma galeria de visíveis retratos de mulher fatal e vitimada pelo destino.

Figura míticaEm 1936, com Rainha Cristina de Rouben Mamoulian, reencontra John Gilbert, uma das suas paixões semi-secretas e galã dos esplendores do mudo e encontra na princesa que abdica do trono e se entrega a uma vida solitária uma espécie de eterno alter-ego. O close-up final aumenta-lhe a dimensão "maior que o natural" e inscreve-a como imagem que incendeia o ecrã. Em Anna Karenina (1935), de Brown, a repetir sem grandes novidades o papel de Love, avulta a sua morte envolta em fumo, mais uma metáfora da sua carismática e evasiva figura mítica. Maria Walewska (1937), ao lado do grotesco Napoleão de Charles Boyer, pouco mais fazia do que assegurar um lugar certo no panteão do romantismo ultramontano.
Já A Dama das Camélias (1937), sob a batuta certeira do "cineasta das mulheres", George Cukor, tocava em outras cordas sensíveis: perfeita no tom melodramático, discreta nos excessos controlados, desgarradamente trágica, a Garbo confirmava os seus dotes de actriz, sem nunca abdicar do seu brilho de estrela. A morte é dada com uma tal economia de meios expressivos que a personagem assume uma pungência inimaginável.
E chega uma nova metamorfose: a Garbo ri. Sob a direcção do mestre da elipse e da alusão, Ernst Lubitsch, entra no reino da comédia, em Ninotchka (1939) com uma inesperada frivolidade e a classe do costume. Aparece como peixe na água na figura da comissária soviética, convertida aos prazeres do capitalismo e à elegância dos chapéus de alta costura. Revelada como genial comediante, depois de ter sido uma das grandes trágicas do cinema, repete a experiência, de novo com Cukor, em A Mulher de Duas Caras (1941), num papel duplo, passeando-se pelo ecrã com agilidade, mas pouco, e panache. Mas o filme fracassa na bilheteira e a Garbo decide retirar-se para um exílio dourado, longe das câmaras e das luzes. Muitas vezes se falou no regresso (nomeadamente numa Duchesse de Langeais, dirigida por Ophüls, ou num Dorian Gray em travesti), mas todas as hipóteses se goraram e a estrela geriu até ao fim da vida, em 1990, o seu silêncio e a sua cultivada "solidão".
Hoje, na data do centenário do seu nascimento, urge resgatar o seu nome dessa solidão: os cinéfilos mais novos pouco a conhecem, o seu estilo distante e altivo, a sua voz profunda de contralto e a sua declamação marcada dificilmente encaixam nos cânones pouco glamorosos da modernidade. Tudo se alterou até o conceito de beleza. No entanto, a sua fotogenia total e o mistério convulso do seu rosto permanecem intocados. Nos EUA. saiu uma caixa com dez dos seus filmes, que esperemos venha a ser editado entre nós, porque a Garbo não tem imitadoras nem descendentes. É única como as estrelas no céu.

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