Mariza, a estrela de Belém

Há uma espécie de comoção geral, capaz de levar todo o público presente nos jardins da Torre de Belém a bater palmas, de pé. Mariza, notoriamente emocionada, não conseguiu cantar uma das últimas estrofes de Ó gente da minha terra e escapou da boca de cena para se resguardar lá atrás, lavada em lágrimas. O efeito era ampliado pelas poderosas imagens raptadas à série televisiva Povo que Canta que passavam nos dois écrãs gigantes que ladeavam o palco. O clima, apesar da chuva miudinha que tinha caído pouco antes, era de extrema intensidade dramática. Como se a vida toda estivesse ali, em dois ou três versos.Ainda assim, mesmo em época de eleições presidenciais, é escusado organizar uma petição para transformar Ó gente da minha terra, a última canção do concerto de terça-feira, no hino nacional. Mas com um público que transcendia gerações e que era socialmente transversal, e cujo número ultrapassava a dezena de milhares de espectadores, segundo as contagens mais conservadoras, a Torre de Belém foi palco de um acontecimento de características claramente populares (a entrada era livre), se não mesmo políticas, de enorme dimensão. Afinal, não foi só Mariza quem esteve em palco.
Jaques Morelenbaum, outra das peças-chaves do bom sucesso do espectáculo, voltou a conduzir a Sinfonieta de Lisboa (já o havia feito por ocasião da passagem da última digressão de Caetano Veloso por Portugal) com garbo. O que não era uma novidade. O fado acompanhado por uma orquestra teve a particularidade de ser servido por arranjos do brasileiro que deixaram imaculadas as versões originais daqueles fados, agora bafejados pela sensualidade e até volúpia das cordas.
Na qualidade de condutor da Sinfonieta de Lisboa, Morelenbaum teve o bom senso e a ousadia de criar uma envolvência quase cinemática para as canções de Transparente e para mais meia dúzia de temas que se vieram a revelar de uma extrema eficácia na capacidade de fazer viajar os espectadores para outro tempo ou para outro lugar. Esse efeito foi mesmo notável em Primavera, um fado popularizado por Amália e que, tal como Mariza sublinhou, é o seu preferido, mesmo antes do primeiro encore.
Tal como se vieram a revelar francamente adequadas as introduções de Morelenbaum em violoncelo para Quando me sinto só (uma homenagem ao fadista já desaparecido Fernando Maurício) ou o seu solo em Duas lágrimas de orvalho (desta vez, em homenagem a Carlos do Carmo). E percebeu-se, sobretudo, a cumplicidade entre o maestro, a Sinfonieta de Lisboa e a cantora, com quem aliás trabalhou na produção do seu último álbum.
Não menos expressiva foi a participação de um quarteto de percussões tradicionais composto por José Salgueiro, Eduardo Salgueiro, Vicky e João Pedro Ruela, capaz de transformar a interpretação de Barco negro num dos momentos mais explosivos do concerto. Se o alinhamento obedece a uma lógica que tem o condão de levar o espectador por caminhos ora mais melancólicos (Montras, Cavaleiro monge), ora mais festivos (Feira de Castro, Oiça lá ó Sr. Vinho, Maria Lisboa), em Barco negro acontece quase uma união desses opostos. O efeito chega a ser devastador também por conta do brilhante jogo de luzes, muito próximo daqueles produzidos nos espectáculos de rock.
Particularmente feliz foi também a escolha de imagens projectadas nos ecrãs, da responsabilidade de João Pedro Ruela e do realizador Ivan Dias, que nos seus melhores momentos foram capazes não só de ilustrar, mas também de ampliar, a mensagem de cada canção. As vielas da Lisboa antiga podiam ser um quase cliché, mas a evocação de José Afonso em Menino do bairro negro ou as da Lisboa moderna em Montras funcionaram como valor acrescentado.
Depois, sobra a música. E a música que Mariza canta tem vindo a aprimorar-se e a reflectir uma escolha de reportório que a diferencia. Afastando-se cada vez mais do modelo amaliano, as canções do seu último álbum revelam uma identidade cada vez mais original, seja devido aos temas da autoria de Paulo de Carvalho (Meu fado meu) ou de Rui Veloso (Transparente), em que é desenhado com minúcia o caminho entre Moçambique e Lisboa, segundo a obra multifacetada de José Afonso. Este fado já não é certamente o mesmo dos anos da geração de ouro dos anos 50. Mas ganha em actualidade e pertinência, exactamente o que dispensa da formatação aplicada ao género pelo Estado Novo.
No final, durante a interpretação de Ó gente da minha terra, desfilaram pelos ecrãs imagens captadas nos quatro cantos de Portugal e recentemente exibidas pela série Povo que Canta (ainda que em horário mefistofélico) pela RTP. Grandes planos de rostos de anciãos marcados pelas rugas e pela ruralidade serviram como uma certidão da vida e da morte no Portugal do século XXI. E, provavelmente, não há nada que consiga comover mais a população urbana de Lisboa que anteontem esteve nos jardins da Torre de Belém.

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