A osmose criativa de la Bjorka e su amoroso, Matthew Barney

Drawing Restraint 9 trouxe a Veneza um casal, Bjork e Matthew Barney. Ela é a pop star.
Ele é o artista que quer ser total: performer, escultor, realizador de filmes. Ela está a ajudá-lo a ser,
para o público fora das artes plásticas, mais do que su amoroso.

Vestida de cor salmão, botins de um vermelho dos diabos, duas pequenas cornucópias de cabelo de cada um dos lados da cabeça, eis Bjork, la Bjorka para os fãs italianos que enchiam maioritariamente a projecção para o público de Drawing Restraint 9, filme/peça/instalação."E quem é aquele?", perguntava um, vindo de Parma, a outro, apontando para o ecrã da sala que transmitia, pelo circuito interno de vídeo, a entrada de um casal. Ela era Bjork, e ele, respondeu outro fã à pergunta, era su amoroso. Acontece que su amoroso é Matthew Barney, o realizador, actor, produtor (com Barbara Gladstone), enfim, o criador, de Drawing Restraint 9, de que Bjork é intérprete e autora da música.
Mas Barney já saberá com o que conta em termos de projecção mediática da companheira, de tal forma que admitiu que esta passagem no Festival de Veneza (na secção Horizontes, destinada a objectos experimentais) serve para lançar o seu trabalho em outros circuitos mais amplos do que o dos museus (por exemplo, as salas de cinema, onde o ciclo Cremaster em alguns países, como Portugal, tem sido apresentado), aproveitando a natureza de "híbrido" das coisas que faz. Bjork pode dar uma ajuda ("Orgulha-me poder ajudar Matthew a tornar mais visível as suas obras extraordinárias e a distribuí-las em outros circuitos", dizia ela em conferência de imprensa), e é fácil perceber por quê: as ovações que a recebem acabam por estender-se a Barney; de repente, su amoroso até pode ter a ilusão de ser estrela pop...
Neste caso, de qualquer forma, não se trata apenas de vampirização ou aproveitamento, porque Drawing Restraint 9 é considerado por ambos "colaboração a quatro mãos, osmose de música, narrativa e imagens".
Diz ele: "É claro que já tínhamos falado antes na possibilidade de isto [trabalharem juntos] acontecer. Mas foi quando escrevia o projecto que percebemos que era algo que podia ser natural para nós. Já trabalhei com músicos, Bjork já trabalhou com artistas visuais, havia um terreno comum."
Ela completa - em versão de lírica de canto da terra: "Conhecemo-nos há cinco anos, era mais fácil trabalharmos juntos do que não o fazer. Durante esses cinco anos plantámos as sementes, sem pensar em nada. Quando começámos a trabalhar foi o tempo da colheita. Se vai ou não acontecer mais vezes no futuro? Não é a altura de o dizer. Talvez sim ou talvez não."
Drawing Restraint 9, como diz Barney, prossegue o seu trabalho sobre o "encontro entre a criatividade e a resistência física", ou seja, sobre o impacte da criatividade no organismo - ele dá o exemplo de um músculo que para se desenvolver precisa de ser sujeito a resistência. São duas horas e 50 minutos povoados de símbolos, metáforas, matéria orgânica, objectos e mecanismos, transformações, metamorfoses. Tudo a bordo de um baleeiro, ao largo de Nagasaki, no Japão, onde se constrói, molda e transforma uma gigantesca escultura de vaselina, como se fosse um pudim (metáfora dos dispositivos que o próprio filme organiza, de que o filme se alimenta).
Há um casal a bordo (Barney e Bjork), cujos corpos são paramentados, transformados (banho em água e laranjas, para ela; a operação de cortar a barba, para ele; trajes tradicionais japoneses para os dois), até chegar ao clímax (uma cena de amor, já o líquido da escultura inundou o navio), em que amputam os pés com um punhal japonês (choque para alguns). Os restos deixam ver o que podem ser caudas de baleia, a sugestão de um renascimento, de nova forma.

O gosto pelo terrorA narrativa é de uma linearidade exemplar, como Cremaster nunca foi - mas a utilização da gramática cinematográfica por parte de Barney continua a ser básica, como se registasse apenas os objectos, uns mais bizarros do que outros, que estão no espaço. A música - estudos para harpa, massas orquestrais compostas para trompete, trombone e oboé, coros infantis, a voz de Bjork, algures... - não é apenas banda sonora, no sentido ilustrativo do termo, já que se interpela as imagens como um diálogo. E reflecte a organização temática do filme: composta para colaboradores habituais de Bjork, como Zeena Parkins, Mark Bell e Leila, ou composta para as regras muito estritas de um instrumento tradicional japonês, o sho (tocado por Mayumi Miyata), a música de Drawing Restraint 9 é também um corpo que nasce da relação entre criatividade e resistência física. E dá à peça uma qualidade de loop hipnótico.
"Neste filme, na relação com a música não se criou o tipo de situação que se cria com as bandas sonoras. Foi um trabalho mais orgânico, um processo interactivo", explica Barney. "Estávamos a montar as imagens e a fazer a música no mesmo edifício, houve sugestões de parte a parte, pedaços que foram compostos para cenas já filmadas ou que me levaram a filmar de certa maneira."
A sua relação com a narrativa cinematográfica, explica, desenvolveu-se com o gosto pelos filmes de terror dos anos 70/80. "Os meus primeiros filmes têm a ver com a disposição de objectos num espaço, e percebi que os filmes de terror também fazem isso: é a casa no meio do bosque, é o rio... Ou seja, uma forma de habitar os objectos. Foram os filmes de terror que me ajudaram a evoluir em termos narrativos."
E Bjork, do que é que gosta? De terror não. "Sendo obcecada pelas emoções, é isso que me interessa. Não via filmes em criança. Não tinha televisão, devo ter perdido alguma coisa. Tento recuperar com o vídeo e o DVD. Gosto de coisas óbvias: Antonioni, Louis Malle, cinema japonês dos anos 60... gosto dos filmes dos anos 60."

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