"NÓS SOMOS TÃO FORTES QUE NÃO PRECISAMOS DOS GOLÃ"

No planalto que Israel conquistou à Síria na guerra de 1967 e anexou em 1981 há um colono judeu que sabe que o terreno em que vive e construiu a sua casa não pertence ao seu Estado. Sabe que mais tarde ou mais cedo vai ter de sair do local onde mora há quase 30 anos. Mais: deseja que o seu país assine um acordo de paz com Damasco. E quando isso acontecer, vai sair pelo seu pé, de livre vontade. Por Maria João Guimarães

Num dia de 1978 Yigal Kipnis decidiu abandonar o Israel urbano e mudar de estilo de vida. Começar do zero, num lugar "onde não havia nada - nem só uma árvore", diz ao PÚBLICO, olhando pela janela que mostra um frondoso jardim verde em Ma"ale Gamla, nos Montes Golã. A mulher deixou a Química e ele a Engenharia Civil, em troca de um projecto de agricultura e desenvolvimento de uma zona remota. "Por que viemos para aqui?", antecipa Kipnis a pergunta. "Era legal. Não sentíamos que estivéssemos a tirar nada a ninguém." E assim, "desde 1980 estamos nesta casa", onde decorre a conversa, acompanhada por água gelada com menta e um ar condicionado algo ruidoso para que não se sintam os 40 graus lá fora. "Vivemos aqui, três dos nossos quatro filhos nasceram aqui, e vivemos simplesmente do nosso pomar de mangas."
Kipnis explica que os habitantes de Ma"ale Gamla, o "seu" moshav (uma comunidade de agricultura colectiva, mas onde os bens são individuais, ao contrário dos kibbutzim, onde são colectivos), foram também atraídos por razões de mudança de estilo de vida. Chegaram, plantaram, construíram, desenvolveram. E assim foram vivendo até 1992.
Nesse ano veio uma "surpresa que ninguém queria": a notícia da possibilidade de um acordo de paz com a Síria, um acordo que significaria a devolução dos Golã e a retirada dos seus 17 mil habitantes. "Desde então que, aqui, todos sabemos que o nosso futuro está em aberto."

Os Golã contra a retiradaSurgiu então uma "voz dos Golã", muito dura, contra esta negociação. Durante algum tempo, foi a única corrente a ser ouvida. Até ao assassínio do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, em 1995. "A voz dos Golã contra Rabin teve um grande peso na opinião pública", considera Kipnis. "E nós pagámos um preço pelo nosso silêncio."
Foi nessa altura que os outros, os silenciosos, tomaram uma decisão: "Formámos um pequeno grupo chamado "os Golã no caminho da paz". Não foi fácil: nunca é fácil falar contra o teu vizinho. Mas tentámos promover uma discussão real sobre o assunto." Kipnis acredita que "a maioria dos residentes dos Golã têm a mesma opinião - mas quase ninguém queria falar".
Entretanto Kipnis pôs-se a estudar a história do local onde vive. "Normalmente, parte-se do princípio de que a região dos Golã estava vazia. Mas não estava: antes de 1967 havia 270 aldeias na zona, destas 223 estavam na área conquistada por Israel."
Estudou também as políticas de vários líderes israelitas em relação ao futuro dos Golã: "Não houve até agora nenhum governo, da esquerda à direita, que não tivesse considerado um acordo baseado na fronteira reconhecida de modo internacional, ou seja, sem os Golã, restando apenas em discussão uma pequena faixa junto à água." No fundo, "tornou-se uma questão psicológica: [O defunto Presidente sírio Hafez ] Assad queria pôr o pé no Kinneret [Lago de Tiberíades] e [o antigo primeiro-ministro israelita Ehud] Barak queria poder dar a volta ao lago". Mesmo a questão da água "tem solução" através de um acordo, garante Kipnis.
Outra falsa questão é, para ele, a importância estratégica e militar da região, um planalto de onde se pode observar território - ou atacar Israel. "A opinião pública olha para os Golã como um problema militar", diz Kipnis. "Mas é tão claro que não é: nós somos tão fortes que não precisamos dos Golã", garante.
Yigal Kipnis é um defensor convicto do interesse de Israel em ter paz com a Síria: "Não é que a Síria nos possa destruir, não pode. Mas pode trazer problemas. Pense como teria sido esta Intifada se houvesse paz com a Síria. Seria muito diferente."
A ligação à retirada de Gaza
Num jardim do moshav, perto da casa de Kipnis, reparámos numa família vinda dos colonatos recém-evacuados de Gush Katif, na Faixa de Gaza. No Sul, nas caravillas, habitações temporárias dos colonos, havia uma campanha de promoção da vida nos Golã. Como vê Kipnis esta ligação entre Gaza e os Golã?
"É claro que há uma ligação", diz Kipnis e contrapõe: "E porquê o silêncio dos Golã? Os Golã estão muito bem organizados e usam a sua voz nos media. Mas agora estiveram calados. O que vimos foi actividade privada, pessoas daqui que ajudaram os colonos que saíram de Gaza ou da Cisjordânia." Respondendo à sua própria pergunta: "Os Golã estão calados porque não querem pôr de novo em dúvida o seu futuro."
A evacuação dos colonatos de Gaza "quer dizer que tudo pode acontecer - a fronteira não terá em atenção o interesse dos colonos mas o interesse de Israel".
Quanto às campanhas para mais habitantes, Kipnis lembra que a área tem uma população estável. "Continuam a ser 17 mil pessoas. A imigração é zero. Crescimento, se houver, é apenas interior. Precisamos de pessoas não por motivos políticos, mas sim para o bem da comunidade. Mas é difícil atrair pessoas para a periferia. E há o peso da dúvida política que sempre paira sobre a região."
Chegámos a um ponto estranho na conversa com Kipnis. A questão dos Golã está longe de ser pacífica entre os israelitas, muitos garantindo que irão defender a manutenção da zona, ao contrário da retirada de Gaza, que foi apoiada pela maioria da população. "As pessoas gostam de vir aqui de férias, ao fim-de-semana, é uma zona bonita, gostam do vinho", explica Kipnis.
E aqui estamos, à mesa com um habitante da zona que nos apresenta todas as razões e motivos para em breve sair daqui. Mas o à-vontade de Kipnis nas questões políticas acaba quando começamos a entrar no terreno do pessoal: "Já ultrapassei o meu interesse particular - claro que preferia viver aqui até ao fim da minha vida." E não podendo, o que fará? "Penso nisso no último dia das negociações. Vivo aqui como se fosse ficar aqui para sempre. Sem negociações à vista é mais fácil falar de tudo isto."

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