A BOLHA QUE ESTÁ A ENGOLIR A PALESTINA

Cisjordânia cortada ao meio. Palestinianos de Jerusalém num gueto. É o que resultará da expansão do colonato Ma"ale Adumim, uma bolha maior que Telavive. É para ligar a Jerusalém, é para sempre, confirma Sharon. É matar um Estado Palestiniano, dizem os críticos. Começou a guerra por Jerusalém. Por Alexandra Lucas Coelho, em Abu Dis (Cisjordânia)

Para Ali, é a "solução final". Ele caminha até à placa "Jerusalem - Ma"ale Adumim" e mede o peso do que diz: "Toda a vida vai ser morta. Não existirá futuro para nós aqui."
Diante dos olhos tem o maior colonato da Cisjordânia. Palmeiras vistosas, casas arrumadinhas como numa maquete, uma torre-reserva de água no cimo da colina. Ma"ale Adumim.
O "facto no terreno" que Israel plantou há 30 anos a Leste de Jerusalém Leste, para que inchasse como um bolo no forno, em direcção à fronteira com a Jordânia.
Agora tem 32 mil colonos, quatro vezes mais do que os evacuados de Gaza. Tem estatuto de cidade, uma câmara, um presidente. E sobretudo tem um vasto perímetro municipal, para a construção de mais casas, mais uma esquadra de polícia, mais um parque industrial, hotéis.
Uma bolha israelita maior do que Telavive.
Sharon acaba de lhe dar todo um futuro. Ma"ale Adumim é para construir, é para ligar a Jerusalém, é para sempre, declarou o primeiro-ministro em entrevista ao Jerusalem Post, há uma semana.
Ali recebera os papéis na véspera. Três folhas. Nas duas primeiras - uma em árabe, outra em hebraico - a confiscação de 80,9 hectares. Na terceira, um mapa da zona.
É uma zona ondulante, que contorna a parte inferior de Ma"ale Adumim. Porque o plano da grande bolha inclui Muro a toda a volta. Barreira de Segurança, dizem os papéis, assinados em Israel a 16 de Agosto, recebidos aqui dia 20.
Em plena euforia mediática de Gaza, Sharon tomava assim as terras a sul de Ma"ale Adumim, que pertencem a Abu Dis e Al Azaryya, povoações palestinianas já quase totalmente cercadas pelo Muro, já quase totalmente isoladas da Jerusalém palestiniana.
Dos 80,9 hectares agora confiscados, cerca de 20 pertencem ao clã Alabya, de que Ali faz parte. "Estas terras são da minha família", diz, estendendo o braço para a direita da placa. "Estamos aqui há séculos."

Expediente kafkianoParece o portão de um pobre armazém. Depois entra-se e a primeira sala é uma biblioteca infantil. A segunda está cheia de computadores, com crianças a navegar. Na terceira há um colorido espaço para pré-primária. E por aí fora, aproveitando todo o espaço: sala para brincar, para pintar, para editar uma revista, para cursos de primeiros-socorros, até ao pátio com escorregas e estruturas de madeira "copiadas de um catálogo e feitas por um carpinteiro daqui, para lhe dar trabalho", explica Ali.
Aos 50 anos, empresário, é a este centro em Abu Dis que Ali Ayad dedica parte do tempo, com fundos da Suécia e da Alemanha.
Ali está em contacto com a Europa, é mesmo casado com uma norueguesa, mas tal como os seus milhares de vizinhos não pode ir a Jerusalém sem autorização especial.
Neste momento, nem sequer pode ir à casa que o pai construiu numa colina junto a Abu Dis, em 1953. "Era uma casa para a família que depois foi transformada num hotel."
Quando o Muro começou a ser construído, Israel confiscou o hotel e a terra à volta, que ainda pertence ao município de Jerusalém. "Fomos considerados ausentes", explica Ali. "Claro, não podemos entrar em Jerusalém..."
Um expediente kafkiano, oficializado como Lei da Propriedade Ausente, que várias organizações de direitos humanos têm denunciado como "o principal meio para pôr em prática a expansão de Ma"ale Adumim".
O ocupante impede o ocupado de chegar à sua propriedade e depois confisca-a porque o ocupado estava ausente.
Ali bateu-se. Contratou um advogado israelita, e ao fim de anos recebeu os primeiros documentos para a devolução do Hotel Cliff.
Um sucesso, por confirmar, quase único. Também porque não punha em causa o Muro. Ali não acredita que se repita nas terras agora confiscadas. "Temos sete dias para apelar, mas não vai dar resultado. Eles querem construir este bocado do Muro à volta de Ma"ale Adumim, que nos fechará completamente. Abu Dis vai ser um campo de refugiados sem estatuto de refugiados. Onde vamos construir uma escola, um hospital, um cemitério? Onde vamos encontrar trabalho? Em termos topográficos, demográficos ou económicos a vida simplesmente não vai ser possível."
O portador das más notícias, a quem coube entregar os papéis vindos de Israel, foi Ibrahim Jaffal, autarca de um beco sem saída. Tem vista para o Muro, no seu gabinete da câmara de Abu Dis, onde ontem o governo palestiniano se reuniu em protesto contra o cerco na Cisjordânia.
"Esta área depende de Jerusalém para saúde, educação, transportes, comunicações, compras", diz Jaffal. "Agora vamos ficar separados de Ramallah [norte] e de Belém [sul]. O objectivo de Ma"ale Adumim é dividir a Cisjordânia em duas, pondo os palestinianos em guetos e matando a possibilidade de um estado viável - porque esta zona é a ligação sul-norte. E depois, pressionar os de Jerusalém Leste a sair."
Desdobra mapas, mostra as povoações cercadas, a futura linha do muro. E pergunta: "É este o preço de Gaza? Engolir a Cisjordânia e Jerusalém? As pessoas não vão aceitar, vão fazer uma terceira Intifada."
Na inédita reunião do governo em Abu Dis, ontem, o primeiro-ministro Ahmed Qorei disse: "Começou a guerra por Jerusalém." Acusou Israel de "racismo", ao "pôr 70 mil palestinianos num gueto", isolando Jerusalém Leste da Cisjordânia. E pediu responsabilidades à América e ao Quarteto (EUA, ONU, Rússia e União Europeia).

O rabi e o palestiniano em E1
Arik e Darwich falam como velhos amigos no cimo das montanhas onde Sharon quer construir mais 3500 casas para Ma"ale Adumim, além de uma esquadra de polícia, já aprovada.
Arik tem uma kippa na cabeça e Darwich as vestes castanhas da sua tribo palestiniana. Arik é rabi, pertence à organização Rabis Pelos Direitos Humanos, uma das mais activas na pequena esquerda activa em Israel. Darwich é o líder da comunidade de Azzayem, uma povoação que confina com a zona E1, como Israel chamou a esta zona do perímetro de Ma"ale Adumim (E, do inglês East).
São 12 quilómetros quadrados - 12 Cidades Velhas de Jerusalém - de montanhas com pedras e oliveiras onde os palestianianos em redor tinham culturas e ainda hoje existem milhares de beduínos.
O sol bate-lhes nos casebres de zinco e madeira. Não têm sombra, não têm árvores e já não são agricultores nómadas. Vivem de pequenos trabalhos, como os homens das povoações, e também não cabem nos planos de Sharon.
Nestas montanhas, 50 hectares eram de Hani Essaui, que agora se junta à melancólica observação de E1. "São terras que vieram do meu avô", diz Hani, 53 anos, rugas de sorrir com os olhos. "Cultivávamos grão, lentilhas, trigo, o que dava, porque aqui não há água."
Onde Hani foi perdendo, Ma"ale Adumim foi ganhando. A sua história é a história do colonato, e ele não se esquece das datas. "Em 1971, quando estavam a preparar tudo, confiscaram-me 10 hectares. Em 1975 [fundação de Ma"ale Adumim], 15 hectares. Em 1985, mais 20. E em 1997, os últimos cinco."
Quer dar provas. "Tenho aqui todos os documentos de propriedade." O que aconteceu? "Israel considerou que era terra do Estado, de acordo com a lei otomana que diz que se a terra não for usada mais de três anos passa a ser do Estado."
A lei dos ausentes.
Ou, à luz de todas as resoluções internacionais, a ausência da lei.

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