O CORAÇÃO DE MARIA DEIXOU DE BATER AOS 114 ANOS

Era a mulher mais velha de Portugal. Nasceu em 1890, morreu na semana passada, em Grijó, onde sempre viveu. Aos 106 anos, ainda ajudava a neta no campo. Gostava de carne de porco e de caldo de couves. Amava a monarquia, odiava Afonso Costa e idolatrou Salazar. No último aniversário, em Outubro de 2004, ainda bebeu champanhe.

A noite tinha sido tranquila. Durante toda a tarde do último domingo, Maria do Couto Maia tinha estado "aflitinha" mas a dificuldade em respirar apaziguara-se às últimas horas do dia. Na segunda-feira, às 8h00, "ainda engoliu o comprimido" de todas as manhãs. Pelas 9h00, a filha, Rosa Lopes Couto, e a nora desta estavam sentadas à beira da cama coberta com uma colcha azul. "Ela estava tão serena. Até que a minha nora disse "Ai, a sua mãe faleceu"." Aos 114 anos, o coração de Maria do Couto Maia deixou de bater. "Foi um choque tão grande para mim... De repente, a minha mãezinha estava morta", recorda Rosa, apertando as mãos no peito.Maria do Couto Maia nasceu a 24 de Outubro de 1890. Era a mulher mais velha do país e a quarta no ranking mundial. Terá sido uma infecção pulmonar a roubar-lhe uma vida cumprida na íntegra na freguesia de Grijó, Gaia. Morreu na passada segunda-feira, no número 313 da Rua dos Lagos, na mesma casa que a viu nascer.
Desde os 100 anos que a centenária estava aos cuidados da filha Rosa. Ocupava o quarto de solteiro de um dos netos, de onde, de Outubro a Março, raramente saía, por indicação do médico. "O senhor doutor Pinto, que já morreu há uns anos, disse-lhe uma vez para nesses meses ela se deixar estar na cama, que estava muito frio", reconstitui Rosa, de 75 anos. Maria levou a indicação à risca mas só há três anos se fixara definitivamente à cama, porque "perdeu o andar".

Uma hóstia uma vez por semanaAos 106 anos, ainda era possível ver Maria, que sempre fez vida no campo, a ajudar uma das netas "nas terras". "Ela tinha uma força incrível. Com aquela idade ainda gostava de ir para lá arrancar ervas", conta Rosa, vestida de negro quase da cabeça aos pés - só os sapatos brancos sobressaem do preto da saia e da blusa.
É difícil retratar a vida de alguém que passou por três séculos sem cair na tentação dos números. Os de Maria são estes: 114 anos de vida, "oito filhas e dois abortos", sete netos, dez bisnetos, cinco trinetos, mais de 50 anos de viuvez. E, até ao fim da vida, uma hóstia uma vez por semana.
"A minha mãe era muito religiosa", assegura Rosa. O padre da freguesia, António Coelho, visitava-a "com frequência" e confirma que a centenária "tinha uma fé inabalável". "Todas as semanas, o ministro da comunhão vinha cá dar-lhe o Senhor e ela esperava aquela visita com uma ansiedade...", revela a filha, sentada no sofá de um verde já coçado.
Ainda há pouco tempo, Maria quis confessar-se. "O senhor padre disse-lhe que ela não precisava mas ela insistiu. E depois foi capaz de dizer o acto de contrição todo direitinho. "Pela vossa infinita misericórdia"... Eu não tenho a fé dela, não tenho não", diz a filha. Em Junho passado, Maria recebeu a visita do bispo auxiliar do Porto. Apesar de ter mantido a lucidez até ao fim, nessa altura já não via e chegou mesmo a duvidar que D. António Taipa estivesse sentado à beira da sua cama. "Essa agora, então o bispo é que me vinha visitar?", terá dito à família.

O orgulho de ser a mais velha do país Apesar da fé, Maria do Couto Maia "tinha horror à morte". "Ela não queria morrer. Às vezes, quando estava mais doente, punha-se a gritar "Aqui d"el-Rei" que não queria morrer. Tudo o que eu mais pedia a Deus era que lhe desse uma morte santa. E Ele deu-lhe", explica Rosa, sublinhando que sempre deu à mãe toda a "atenção e carinho" que ela merecia. "Estive com ela até ao fim, ela nunca esteve sozinha."
Se há um segredo para semelhante longevidade, Rosa Couto não o conhece. "O meu avô morreu com 82 anos, a minha avó com 50 e os irmãos da minha mãe foram todos novos", adianta. Maria viu morrer os pais, o marido, "duas filhas pequenas" e três já adultas - a filha mais velha faleceu há três anos, mas a centenária nunca soube. "Quisemos poupá-la. Dissemos-lhe que ela estava acamada e que, por isso, não podia vir cá vê-la", justifica Rosa.
"A minha mãe nunca teve problemas de maior", diz ainda Rosa Couto. Maria vivia há alguns anos com uma angina de peito, que a filha acredita possa também ter sido contornada graças a um apetite à prova de bala. "Comia muito bem. Gostava muito de carne de porco e de bacalhau. Quando ficou com dificuldades em engolir, dávamos-lhe sopa passada e ela pedia um caldo de couves. Bebia para cima de um litro de leite por dia, quase sempre com canela, e gostava muito de fruta", recorda.
Maria do Couto Maia sabia que era a mulher mais velha do país e orgulhava-se disso. A família também. "Gostava tanto de ver a minha mãe nas fotografias das revistas", confessa Rosa, olhando para os recorte espalhados em cima da mesa da sala, coberta por napperons, e sem conseguir conter as lágrimas. Mas recupera depressa o sorriso, para lembrar que em Outubro de 2004, quando completou 114 anos, Maria "ainda bebeu champanhe".

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