Tocqueville

Lembremo-nos sempre que o amor pela liberdade não deriva apenas dos bens materiais que ela gera

Alexis de Tocqueville, cujo bicentenário do nascimento hoje se assinala, reunia as qualidades do jornalista, capaz de captar num relance o essencial, do sociólogo, senhor dos instrumentos para analisar a realidade observada, do pensador político, dono de uma visão que lhe permitia projectar no futuro as lições que daí retirava, e ainda do homem de acção, já que foi também deputado e ministro. Essas qualidades, associadas a uma ascendência aristocrata e a uma vivência democrática, fizeram dele o autor de uma obra visionária cujo real valor muitos só redescobriram recentemente. A tal não foi indiferente o sucesso que tiveram dois dos seus contemporâneos, Auguste Comte e Karl Marx, dois autores cujas análises a História não confirmaria mas cuja obra teve enorme influência sobre a acção política do último século e meio.O positivismo de Comte, alicerçado na crença do progresso industrial e científico e na capacidade de organizar racionalmente as sociedades humanas, conduziu à fé na infalibilidade em moral e política e, por essa via, serviu de base filosófica a formas ditas "modernas" de "despotismo esclarecido", a ditaduras que visavam impor o progresso. A América Latina, e o Brasil em particular, experimentaram desses sobressaltos.
O materialismo de Marx, baseado numa leitura da História que lhe encontrava um "sentido" e um "destino", destino esse igualmente racional e humano, conduziu a movimentos que, em nome da interpretação da vontade dos agentes dessa visão da História, impuseram regimes totalitários que se acreditava poderem produzir um "homem novo" e, até, o "paraíso na Terra".
Muito do que foi feito em seu nome pouco tem a ver com o seu pensamento, mas as derivas despóticas a que assistimos desde que o aristocrata francês escreveu Da Democracia na América sublinham a pertinência das suas preocupações. E mesmo que hoje pareça que os desvios totalitários pertencem definitivamente ao passado, convém não esquecer alguns dos seus avisos premonitórios. "Gostaria de imaginar que traços novos assumirá o despotismo no mundo", escreveu Tocqueville, acrescentando: "Vejo uma multidão incontável de homens semelhantes e iguais que revolteiam sobre eles mesmos em busca dos mais pequenos e vulgares prazeres, com os quais preenchem a alma. Cada um deles, separado dos outros, é como alguém a quem o destino dos outros é absolutamente indiferente". Sobre tal multidão entregue ao hedonismo vulgar e destituída de qualquer espírito de solidariedade ou de participação cívica, sobre esses homens presos "irremediavelmente na infância", qualquer novo poder absoluto poderia afirmar-se sem resistência ou inquietação.
Daí que, para Tocqueville, seja necessário temperar o igualitarismo perante o Estado e as leis com a indispensável liberdade que pressupõe o pluralismo e incorpora a responsabilidade. Ao liberalismo democrático de Tocqueville não são, por isso, alheias as noções de moral e de virtude, indispensáveis para que a tentação do prazer imediato perca para o princípio da gratificação diferida, que implica esforço, trabalho e um sentido cívico que permite o progresso. Este não decorre apenas da tecnologia ou dos avanços científicos, mas da capacidade das sociedades de encontrarem formas de organização e de relacionamento que tirem partido do que o génio humano vai criando.
Até porque - sábias palavras... - "não creio que o verdadeiro amor da liberdade tenha alguma vez nascido apenas do olhar sobre os bens materiais que ela gera", antes do seu encanto próprio, ancorado no coração dos homens. Foi escrito há 150 anos, mas poderia ser mais actual?

Sugerir correcção