A extinção do Ballet Gulbenkian "tem a ver com uma política de fundo"

Teresa Patrício Gouveia tomou posse na Fundação Gulbenkian
em Novembro do ano passado. Como responsável pelo Serviço de Música, de que o Ballet faz parte, o seu nome aparece associado ao fim de uma companhia com 40 anos de história. Mas a administradora não se vê
como "carrasco" da instituição, antes diz ser sua responsabilidade "contribuir para que os recursos da fundação sejam usados da maneira
mais eficaz possível". Por Vanessa Rato

Foi há exactamente uma semana que a Fundação Calouste Gulbenkian anunciou a extinção da sua companhia de dança e o cancelamento imediato da programação para a temporada de 2005. O comunicado saiu às cinco da tarde; Paulo Ribeiro, o director artístico da companhia, soube duas horas antes; alguns dos 25 bailarinos que integravam aos quadros da única formação de referência do género em Portugal souberam pela comunicação social. Desde então, individualmente ou em conjunto, através de abaixo-assinados ou por carta, as manifestações de contestação têm-se sucedido - o momento da decisão surpreendeu mesmo aqueles que acham que uma companhia de reportório como a da fundação não é hoje uma prioridade para o meio.Ontem, no hall de entrada da fundação, em Lisboa, ainda havia uma pilha de programas com as seis estreias absolutas de dança que deveriam começar a ser apresentadas a partir de Novembro. Na primeira entrevista sobre o tema, a administradora responsável pelo Serviço de Música, com o coro, a orquestra e o Ballet Gulbenkian, diz que a decisão "tem a ver com uma política de fundo". Teresa Patrício Gouveia, que tomou posse em Novembro do ano passado, não se vê como a pessoa que veio acabar com um emblema: "A vida é dinâmica, as instituições também."
PÚBLICO - Há uma pergunta que toda a gente se faz: "Porquê agora?"
Teresa Patrício Gouveia - Porque foi agora que se concluíu o processo de decisão. Não foi antes, porque a discussão não estava concluída. Tanto quanto sei, há anos que a questão vem pairando e sendo aventada. Do meu ponto de vista, não há vantagens para que estas situações de indefinição se eternizem. É negativo para as institutições e para as pessoas que nelas desenvolvem a sua actividade.
Como foi tomada a decisão?
Nos últimos meses a discussão iniciou-se de forma sistemática e conclusiva, como eu penso que deve acontecer em todas as organizações, sejam elas públicas ou privadas. O processo, que é um processo de decisão alargado, concluiu-se muito recentemente, quase em cima do fim da temporada. Pareceu sensato, ou adequado, que a conclusão não fosse mantida em reserva e fosse comunicada em primeiro lugar aos interessados e ao público, que é também a quem a fundação se dirige.
Mas ainda há dois anos houve o fim da direcção de Iracity Cardoso. O convite de sucessão a Paulo Ribeiro, um autor mais contemporâneo, foi tomado como a afirmação de um reinvestimento na companhia. O que aconteceu? Não ficaram satisfeitos com o redireccionamento tomado?
Pelo contrário. Esta decisão não envolve nenhum menor apreço ou avaliação menos positiva quer da qualidade profissional dos bailarinos quer do seu empenhamento. O mesmo para o seu director, o Paulo Ribeiro, que deu uma colaboração muito valiosa à fundação. Se fosse esse o caso, ter-se-ia renovado o elenco e a direcção. Não é. A decisão tem a ver com uma política de fundo, significa uma alteração na forma de intervir na área mais adequada aos problemas da dança em Portugal. No que diz respeito à companhia, a administração registou em acta o reconhecimento pelo Ballet Gulbenkian ao longo de décadas. Pareceu que o momento de comunicação deveria ser feito de forma institucional, como foi feito, mas isso não revoga a manifestação que a fundação quer ter relativamente a cada um dos colaboradores da fundação nesta área. Cada bailarino, cada colaborador receberá uma carta pessoal reconhecendo, valorizando e agradecendo o seu contributo individual para o bailado. O director artístico também.
Inevitavelmente esses bailarinos são os mais revoltados, não só com a situação, mas com a forma como chega o anúncio. Não havia outra maneira?
Haveria mil maneiras. Eu compreendo profundamente o estado de espírito dos bailarinos que se entregaram e que deram o melhor de si à dança, ao público e à fundação. Compreendo, tanto quanto posso compreender, o seu desgosto. A fundação fez aquilo que considera ser a sua obrigação: não serão regateados apoios para facilitar esta transição profissional através de compensações, mas também na disponibilidade em apoiar a constituição de um agrupamento, caso seja esse o caminho que eles queiram tomar. A fundação tem toda a disponibilidade e meios para ajudar, quer do ponto de vista de um estudo de viabilidade, procura de local, apoio para o arranque. A manifestação de vontade tem que vir dos próprios, mas cá estaremos para encontrar uma solução.
Falou numa reestruturação que tem vindo a ser feita. Inclui o fim dos Encontros Acarte...
Do que eu falo é de um processo de avaliação contínua que uma fundação como a Gulbenkian deve realizar. As instituições têm que ter o discernimento e a liberdade de, a cada momento, tomar as decisões que parecem mais oportunas em nome da realização dos estatutos e dos propósitos para os quais foram criadas. O conselho de administração tem obrigação de zelar por eles da maneira mais pertinente. Em cada momento.
A fundação continua a ter actividades directas e actividades de distribuição. Não há preconceitos relativamente a formas de intervir. Numas situações continuará a ter actividades directas, noutras... Tem sido dado o exemplo das bibliotecas [itinerantes, que acabaram]. Creio que explica muito bem a oportunidade de se alterarem políticas.
Em função da situação da dança em Portugal, achou-se que, neste monento, era mais relevante intervir na área com outros instrumentos.
Mas pode-se dizer que a missão do Ballet Gulbenkian estava terminada, sendo a única grande companhia de referência em Portugal?
O reportório contemporâneo está acessível directamente através das companhias que o criam. Apresentam-se quase só em Lisboa - seria bom que pudessem também ser recebidas por um público fora de Lisboa: essa é uma questão a que queremos atender. Por outro lado, o papel de uma fundação não é o de simples conservação de património, neste caso coreográfico. Há aqui uma avaliação de oportunidade e eficácia. Os problemas, muitos e de várias naturezas, com que a dança em Portugal hoje se debate não estão a ser atendidos pela existência de uma companhia de bailado própria, por muita qualidade que ela tenha, e tem.
O que torna o panorama da dança em Portugal tão negro?
Existe um grande potencial de criatividade, mas dificuldades de várias ordens, a começar pelo acesso a uma formação continuada. Também há problemas na área de equipamentos. Coisas tão simples como um espaço disponível em que grupos possam trabalhar com uma certa continuidade. Estruturas. Há problemas de descentralização, de falta de acesso, problemas ligados com a internacionalização, dificuldade em que certas produções coreográficas se apresentem fora do país... Hoje o mercado já não pode ser visto só como o nacional: é natural que os grupos, as companhias e os bailarinos tenham a expectativa de alargar o seu público e de confrontar a sua actividade com outros públicos, com outras opções artísticas, o que é indispensável para a riqueza estética e artística. Faz parte das expectativas poder interagir de uma maneira alargada com outras situações, fora do país: também aí haverá espaço a apoio.
Falava na falta de espaço. A Gulbenkian pensa abrir os seus palcos às companhias de fora?
A fundação pensa continuar a programar dança no seu espaço. Haverá com certeza companhias portuguesas e estrangeiras que continuarão a apresentar-se no palco da fundação. Também se desenvolverá a área da coreografia no âmbito de programas que a fundação já desenvolve, como o Programa de Criatividade e Criação Artística, onde poderá haver experiências aqui dentro - isto mais no plano da formação. Companhias residentes não - programação sim, nacional e internacional.
Haverá um programador?
Não me parece que seja a prioridade encontrar o nome de um programador, interessa é que se construa este programa [de apoios] de uma maneira coerente. Depois se verá qual é a oportunidade de alargar a capacidade do staff da fundação, se for caso disso. Neste momento, o que estamos a pôr de pé é um programa alargado de intervenção nesta área - isso parece-nos a prioridade, para que ele possa ser eficaz e actuante já a partir do orçamento do próximo ano.
Ou seja, a partir de Janeiro de 2006, os agentes do meio terão uma forma de se dirigir à Gulbenkian e pedir apoios?
O plano de actividade inicia-se em Janeiro. O tempo daqui até lá é o que temos para preparar este programa.
Mesmo assim, e mesmo tendo em conta que esta era uma discussão que existia há dez anos, ela constitui o seu primeiro gesto de administração. Não a preocupa ficar como o carrasco do Ballet Gulbenkian?
Não vejo a questão assim. Como digo, situações de indefinição não são ambientes propícios nem vantajosos. É minha responsabilidade contribuir para que os recursos da fundação sejam usados da maneira mais eficaz possível. É a minha obrigação.
Este gesto não é nem será um desinvestimento na área da dança?
Certamente não é. O Ballet Gulbekian faz parte do património da fundação e fará sempre. Deu um contributo incalculável à renovação da dança em Portugal. Mas a vida é dinâmica. E a vida das instituições também.
Acha que, no fundo, as pessoas estão a reagir é à mudança?
É perfeitamente natural.

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