Novos moradores da Bouça podem "melhorar o ambiente do bairro"

O projecto da Bouça, desenhado por Siza Vieira, começou a ser pensado em 1974, mas só cerca de 30 anos depois se conclui. O PÚBLICO foi ao bairro perceber como é que os "velhos" habitantes se adaptaram, em 1979, às casas e como é que vão acolher os novos moradores, entre os quais se encontram activistas políticos e, claro, gente interessada na obra do projectista. As reacções à perspectiva de novos vizinhos é para já boa, embora haja quem tema que daqui a alguns anos a especulação imobiliária tome conta do lugar

Quem atravessa actualmente o bairro da Bouça, desde a Rua da Boavista até à estação de metro da Lapa, dificilmente reconhecerá no local, poeirento e com taipais a toda a volta, uma obra de Álvaro Siza Vieira. Mas a verdade é que só agora é que o complexo vai expressar o que o arquitecto de facto imaginou para o local: construído como habitação social no pós-25 de Abril, no âmbito do SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local), o bairro esteve incompleto durante mais de 25 anos. A sua conclusão, prevista para o princípio do próximo ano, vai trazer moradores diferentes, atraídos pela assinatura de Siza. "Esperamos que as novas pessoas possam melhorar o ambiente do bairro", diz Adelino Costa, vogal da Associação de Moradores da Bouça (AMB), que refere que há "camaradagem" e um "bom convívio" entre os habitantes, mas também que a polícia chegou a ser presença "regular" nos últimos tempos. Certo é que a vida da Bouça vai mudar: "Presentemente, são todos moradores iniciais", esclarece, sobre os actuais ocupantes. Prevê-se que no final do ano a situação comece a mudar, com a conclusão das primeiras novas habitações, denominadas de "custos controlados"e vendidas no âmbito cooperativo, oferecendo preços imbatíveis no centro da cidade: um andar T3 vai custar pouco mais de 76 mil euros.

A surpresa inicialOs primeiros tempos dos moradores, em 1979, foram de estranheza: em primeiro lugar pela qualidade e dimensão das divisões; em segundo, pelas soluções arquitectónicas de Siza Vieira: acabamentos a madeira e vidro, pé-direito baixo, corredores estreitos e com escadas a pique. "Se tivesse de sair um caixão [de dentro das habitações], não dava a volta", exclama Belmira Costa, que já chegou a ser retirada de casa numa lona, visto que a maca "não passava".
A moradora, de 56 anos, vive no bairro desde Outubro de 1979, quando este ainda nem tinha electricidade, vivendo nessa situação até Maio de 1980. Antes disso, ocupava um quarto, com as suas quatro filhas. "Jogámos pelo seguro. Não sabíamos se voltávamos a entrar. Lutámos muito para ter as casas", diz, lembrando que a construção já estava finalizada desde 1978 - o risco das burocracias se prolongarem por mais tempo era grande. A obra apresentava, aliás, várias imperfeições quando começou a ser habitada. Por exemplo, a escadaria que dava acesso às habitações superiores era provisória e de madeira - os moradores substituíram-na por uma de ferro, em meados dos anos 80. O saneamento acabou por ser resolvido depois da situação aparecer na televisão, "num programa do arquitecto Nuno Portas", lembra Fernando Cardoso, presidente da assembleia geral da AMB.

Os novos habitantesA distribuição das novas habitações foi feita de maneira a dar prioridade aos membros da AMB e aos seus familiares. Só depois foi dada hipótese aos moradores da freguesia da Cedofeita. O encenador José Carretas, da Panmixia, vai ser um dos novos proprietários da Bouça: a sua história está, aliás, profundamente ligada àquela zona da cidade, já que o pai, engenheiro civil, era o proprietário do terreno, no bairro da Tutoria (actualmente Centro Educativo de Santo António), onde se construiu o um prédio que viria a ser ocupado pelos futuros habitantes do bairro, em 1974 (ver texto nestas páginas).
A família conservou dois lotes desse terreno, tendo Carretas vivido numa casa construída no local, dos sete aos 20 anos. "Para mim vai ser um prazer especial. O bairro ainda mantém algo de social e algo de Siza. Hoje em dia já não é o que terá sido de revolucionário (...) no panorama da cidade. Falamos em duplexes, dos primeiros da cidade. Foi uma ousadia fantástica", comenta. O encenador confessa, porém, que "supunha que [as novas casas] iam para a malta da Bouça": "Quando me inscreveram, em 2001, achava que nunca viria para cá morar. Era o número cento e qualquer coisa. Houve muita gente que se assustou com os preços e desistiu. Talvez não tenha havido informação suficiente".
Carretas reconhece, porém, que o primeiro factor de agrado não foi Siza Vieira, mas sim "a integração" na comunidade. "Eles eram os meus vizinhos. (...) Sinto-me identificado [com eles] em vários níveis. É a minha gente", explica. Algumas das peças dirigidas pelo autor, como Ilhas e O Rio, contaram com associados da AMB, enquanto actores: "Se eu fizer um espectáculo e não os convidar, eles ficam "chateados"", frisa.
Mas os novos moradores também trazem consigo alguns perigos: "Há uns movimentos subterrâneos para limpar o bairro, mas eu não alinho nisso. Se hoje há gente nova, é graças aos antigos moradores. Eles são 56, os novos fogos são 72 e a associação vai ficar em minoria, o que não será desejável. Pode haver um desvirtuar do bairro, o que não é uma ideia muito simpática para mim". Quanto a tendências dominantes entre os novos moradores, o encenador diz que há muita gente "de Arquitectura e do Bloco de Esquerda (BE)".
Carlos Carvalho, que também se vai mudar para a Bouça e que participou na ocupação de 1974 (ver caixa), quando era militante da Liga Comunista Internacionalista, explica a situação: enquanto sócio da AMB teve direito a prioridade para ficar com uma casa, mas a determinada altura "faltava gente", pelo que, tendo agora aderido ao BE, acabou por falar com gente do partido, que foi espalhando que havia "umas casas jeitosas" à venda.
"Isto é mais do que um projecto de habitação", explica Carvalho, que evitou assim que as casas fossem compradas por "gente que só quer ganhar dinheiro", ganhando "gente com disponibilidade física e mental" para "um plano de integração social", que tem para já prevista uma lavandaria colectiva e um grupo de teatro, para o qual Carretas já foi desafiado. Mas apesar da ligação partidária, Carlos Carvalho aponta como denominador comum dos novos moradores "a ligação às artes e à Arquitectura", com muitos deles a serem "apreciadores da obra" e "alunos ou ex-alunos de Siza".
José Carretas considera que os actuais inquilinos podem ver as mudanças como uma "espécie de promoção social", mas que daqui a alguns anos pode haver um "choque de mentalidades. Adelino Costa reconhece que, enquanto os velhos moradores "viviam em caves", os novos "são de outro extracto social", mas também acentua que "o pessoal (...) não é arruaceiro". "Deve haver bom entendimento", prevê.
Com a conclusão das obras, termina uma era na história do bairro, mas há o risco da especulação imobiliária, que pode mudar por completo a sua face. Quer os moradores antigos, quer os novos, estão comprometidos a não vender as suas habitações num prazo de cinco anos. Mas é difícil imaginar que todos resistam à tentação de vender e obter com isso uma margem de valorização altíssima: as habitações já existentes vão ser compradas por apenas 30.000 euros (no caso de um T3). E sabe-se que muita da "gente da Bouça" tem dificuldades económicas e que viver numa casa desenhada por Siza Vieira pode valer muito para muita gente.

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