Live 8: Concerto contra a pobreza em África
Em Londres, o Live 8 reúne os Pink Floyd, 24 anos após o último concerto. O baixista Roger Waters reencontra os três companheiros, com quem andou muitos anos de relações cortadas e em tribunais sobre direitos sobre o nome do grupo.
"Quaisquer desavenças que Roger e a banda tenham tido no passado são insignificantes neste contexto", disse o guitarrista David Gilmour. Os U2 (de Bono), que estiveram no Live Aid, tocam em Londres e seguem para Viena para mais um concerto da digressão de apoio ao álbum How To Dismantle An Atomic Bomb. Os Coldplay, uma das maiores bandas da actualidade, tocam também em Hyde Park. Nos restantes palcos, releve-se uma rara apresentação ao vivo de Stevie Wonder, em Filadélfia, e de quatro veteranos em Berlim: o ex-Beach Boys Brian Wilson e o grupo Crosby, Stills and Nash (sem Neil Young). Nos últimos dias, havia bichas um pouco por todo o Reino Unido para conseguir um bilhete de última hora para o concerto de Hyde Park.
Vinte anos depois do Live Aid, a fome em África não desapareceu, mas os dez megaconcertos de hoje não têm como alvo principal angariar fundos para alimentar o continente e sim fazer pressão sobre os líderes mundiais através da opinião pública. É ao Grupo dos Oito (G8), que tem a sua cimeira anual na Escócia de 6 a 8 de Julho, que o Live 8 é também dirigido - serão uma espécie de espectadores-fantasmas. Vinte anos depois, o maior evento musical e humanitário da história está mais político.
Com um milhão nas ruas e 5500 milhões de telespectadores previstos, Bob Geldof e Bono Vox, que relançaram o evento há dois meses, querem levar George W. Bush, Tony Blair, Jacques Chirac, Gerhard Schroeder, Silvio Berlusconi, Paul Martin, Junichiro Koizumi e Vladimir Putin a perdoar a dívida de África, a duplicar a ajuda ao continente e a promover um comércio mais justo.
Quando o alinhamento foi revelado no início de Junho, Bob Geldof, o músico irlandês mentor do Live Aid, disse: "Nós não queremos o dinheiro das pessoas; nós queremos as pessoas." Geldof tem a expectativa de que o envolvimento de algumas das maiores estrelas pop/rock mundiais nos concertos simultâneos "crie pressão política interna" em cada um dos oito países mais industrializados do mundo.
A fadista Mariza, a única artista portuguesa no Live 8 (actua às 18h30 nos arredores de St.Austell, na Cornualha), também "espera poder puxar uns cordelinhos para os políticos perdoarem a dívida de África". Mariza, que nasceu em Moçambique, actua no palco dedicado a África (não existia no início) e foi convidada a participar por Peter Gabriel. "A ideia do Live 8 é conseguir chamar a atenção do G8 para que há um problema grave. Portugal não podia ficar de fora, porque tem uma grande história com África, um romance..."
Mas como é que as estrelas pop podem ajudar África? Um porta-voz do Live 8 respondeu aos cépticos, quando vozes como Damon Albarn, o líder dos Blur e dos Gorillaz, disseram que o evento era demasiado "anglo-saxónico" (branco) e não fazia nada para promover uma imagem positiva de África: "A intenção de Bob Geldof é conseguir concertos, capazes de agarrarem os media, com pessoas que enchem estádios e arenas." E o próprio Geldof afirmou: "O Live 8 não é um acontecimento cultural, mas um acontecimento político. Precisamos dos artistas mais conhecidos para reunir o máximo de gente. O critério é a popularidade e as vendas."
Um político português da nova geração, João Gomes Cravinho, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros há cem dias, diz que o Live 8 mostra uma maior maturidade por ser mais político e global: "Há uma consciência de que os problemas são de uma dimensão que não é compatível com a angariação de fundos. Foi sensato destas vez não estarem preocupados em angariar dinheiro. Só estão preocupados com a consciencialização. E é um evento muito mais globalizado."
Às estrelas, afirma o músico português Pedro Abrunhosa, "cabe fazer com que a opinião pública transforme o mundo". "A lição mais importante do Live 8" é a capacidade "de criar um movimento de opinião pública", mostrando "aos grandes líderes que a população não está adormecida". E como "os políticos gostam muito de aparecer", eventos como este tornam-se "numa tentação grande de mais para resistir", porque "a música chega a populações onde nenhuma linguagem política entra".
Os novos artistas empenhadosApesar de muitas pessoas pensarem que o pior que pode haver é "uma estrela rock com uma causa", comentou já Bono várias vezes, há uma nova geração de artistas empenhados. Os ingleses Coldplay encarnam-na melhor do que ninguém. "Vivemos todos no mesmo planeta e toda a gente deve estar preocupada com os seus problemas" sociais e ambientais, afirmou no início do mês Chris Martin, líder do grupo e marido da actriz Gwyneth Paltrow, citado pela AFP. Martin fez do comércio justo e da organização não governamental Oxfam a sua causa.
Ao contrário dos artistas empenhados dos anos 60, como Bob Dylan e Joan Baez, o líder dos Coldplay não toma posição nas suas canções: "É difícil encontrar alguma coisa que rime com acordo de comércio livre norte-americano (NAFTA)", ironizou Martin.
Mas nos últimos tempos, em especial após o 11 de Setembro, sucedem-se os índícios do regresso da música ao político, às causas, à militância, aos movimentos colectivos. É na forma de operar que surgem as principais divergências entre artistas: há os que acreditam no clássico poder da palavra e optam por canções de apelo directo, como Manu Chao, Bruce Springsteen ou os REM; há os que recorrem a conceitos estéticos ou criam ambientes que traduzem as tensões do mundo como os Massive Attack ou Björk; há ainda o músico-figura-pública, que acredita que o seu glamour mediático é suficiente para chamar a atenção sobre os problemas, como fazem os Coldplay e os U2.
"A grande produção do Live 8 ultrapassa em muito a vontade do próprio artista em querer ajudar", diz o músico português Luís Represas, autor do hino Timor. "A Madonna talvez possa bater à porta, mas quem não chega lá deve ficar contente por estes eventos existirem. Não tenho a menor das dúvidas que esta mensagem constante - já é o segundo evento destes - ajuda muito mais do que qualquer político cinzentão ou artigo de jornal. Não podemos virar as costas, porque vale sempre a pena mobilizar as pessoas, as almas, já tão arrefecidas perante a imagem da criança esquelética com os olhos cheios de moscas."
Hoje, um político sentado no sofá a ver o Live 8 na televisão vai pensar o quê? Esse político, diz Cravinho, cuja tese de doutoramento foi sobre Moçambique, "vai pensar que a opinião pública mundial não quer que algumas partes do mundo caiam neste processo de globalização".