"Ficaram só as paredes" em Póvoa de Luzianes

No dia seguinte à tragédia, a aldeia onde anteontem arderam três casas continua em estado de choque. O presidente da Câmara de Nelas, José Correia, desconfia de fogo criminoso

"Ficaram só as tristes paredes!" Ao desabafo de Maria Odete Sampaio, cujo olhar reflecte o drama do dia anterior, reage Cidália Ramos: "O fogo parece que se metia dentro das casas!". O incêndio, que deflagrou em Vale de Igreja (Seia), atravessou o rio Mondego e chegou ao lugar de Póvoa de Luzianes, freguesia de Senhorim, concelho de Nelas, onde destruiu três casas de habitação. Restaram as paredes. A tragédia atingiu assim a povoação, que até anteontem só vira o poder destruidor do fogo pelas imagens da comunicação social. "Foram momentos muito difíceis, o vento estava a empurrar o fogo para cá! Vivo aqui há 45 anos e nunca vi nada assim. Foi tudo muito rápido, em poucos minutos o fogo queimou tudo... Tenho visto na televisão, mas até me custava a acreditar que as chamas pudessem destruir tudo de um momento para o outro", conta, ainda em choque, Francisco Ramos, de 65 anos.
António Paraíso concorda: "Vivo aqui desde que nasci há 75 anos. Já vi o fogo andar aí no mato e nos pinhais, mas nunca tinha chegado assim à aldeia." "O incêndio deu um salto pelo ar de 500 ou 600 metros para o lado de cá do rio", vinca, por seu turno, Francisco Ramos, apontando o verde que resta junto às margens.

"Passei a noite com a mangueira a regar"
Na noite de quarta para quinta-feira ninguém dormiu na aldeia. Os moradores continuaram alerta, vigiando os reacendimentos. "Arderam-me os currais e as galinhas morreram queimadas, aqui junto a casa. Por isso, passei a noite com a mangueira a regar para evitar que [os reacendimentos] se alastrassem à casa. Utilizei a água da rede... Espero que o dr. José Correia [presidente da Câmara de Nelas] me ajude", diz, num lamento, Maria do Carmo Pais, acrescentando que ainda lhe "ardeu um olival com 50 oliveiras".
A casa da mãe de Maria do Carmo foi totalmente consumida pelas chamas. "Não se salvou nada! Com 78 anos, ao ver o fogo, a minha mãe, que já teve um AVC [acidente vascular cerebral], sentiu-se mal e ainda está internada no hospital em Viseu. Ainda não sabe que as chamas lhe destruíram a casa", salienta. A habitação ao lado também ficou destruída. A idosa que lá vivia estava ausente na Suíça, em casa de uma filha. Além da mãe de Maria do Carmo, mais seis civis e dois bombeiros receberam assistência médica, devido à inalação de fumo e desgaste físico.
Ao PÚBLICO, a filha da desalojada conta que ainda ninguém lhe prometeu ajuda. "Eu acho que vale a pena recuperar a casa [da mãe], mas ela não tem dinheiro. Espero que haja compreensão e que nos apoiem. Gasta-se dinheiro em coisas menos necessárias. Espero que agora também nos ajudem, porque o fogo roubou-nos tudo", lamenta.
No local, vários moradores admitem a falta de limpeza do mato e floresta que envolve a aldeia. "Havia feno desta altura", aponta Cidália Ramos, encostando a mão à cintura. "Se os privados não tratam da limpeza, então o Governo devia limpar", continua.

"Está montada uma indústria de fogos "
Ainda que não tenha provas, o presidente da Câmara de Nelas, José Correia, disse ao PÚBLICO estar convencido de que o fogo terá tido origem criminosa. "Acredito que 80 ou 90 por cento dos incêndios têm mão criminosa. Infelizmente, o cenário repete-se todos os anos. Ninguém quer resolver este problema, porque há uma indústria montada atrás do flagelo. Se os aviões e os helicópteros não trabalham, não ganham... Eu nunca vi nada, mas acredito nos relatos, que já todos ouvimos, de objectos que são atirados do ar, deflagrando incêndios", concretiza o socialista, alegando que se "o dinheiro gasto nos aviões fosse desviado para a limpeza de matas, seria menos dispendioso e mais eficaz" na prevenção.
O autarca lamenta também que os tribunais deixem sair em liberdade os alegados incendiários só porque não foram apanhados em flagrante. "Isto é um país em desagregação. Além da indústria dos incêndios, faltam acções de prevenção, civismo e educação", argumenta.
A Câmara de Nelas esperava ter ontem concluído "um levantamento de tudo o que ficou destruído, para enviar ao secretário de Estado da Administração Interna", que, segundo José Correia, já se disponibilizou para ajudar. "Certamente será dinheiro para recuperar as casas ardidas. Também a câmara irá dar o apoio possível", sublinha o autarca, acrescentando que também a Cáritas Diocesana de Viseu já disponibilizou apoios.

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