Eugénio de Andrade: despedida à entrada do Verão

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Aos 82 anos, Eugénio de Andrade era um dos poetas portugueses mais genuinamente lidos, estudados e traduzidos do século XX Guilherme Venâncio/Lusa

Estava escrito: "Pela manhã de Junho é que eu iria/ pela última vez." E foi. Eugénio de Andrade morreu ontem, entre as 3h30 e as 4h da manhã, na sua casa do Porto, de onde avistava o Douro a entrar no mar e as palmeiras "altas como marinheiros de Homero" no jardim do Passeio Alegre.

Aos 82 anos, era um dos poetas portugueses mais genuinamente lidos, estudados e traduzidos do século XX, homenageado em vida com inúmeras iniciativas e distinções, incluindo, em 2001, o Prémio Camões, o mais importante em língua portuguesa.

"Morreu durante o sono, encontrámo-lo de olhos fechados com uma expressão serena, sem sofrimento", contou ao PÚBLICO Miguel Moura, afilhado de Eugénio, referindo como causa imediata da morte uma paragem cárdio-respiratória. Horas depois, o corpo deste "naturalmente pagão", "à grega, em sentido literal e metafórico" - como escreveu Eduardo Lourenço -, foi trasladado para a Cooperativa Árvore, onde ficou em câmara ardente.

O funeral realiza-se hoje, às 16h30, no cemitério do Prado do Repouso, "sem pompa nenhuma, nem verbal", diz Arnaldo Saraiva, presidente da Fundação Eugénio de Andrade. "Será o mais simples possível, como ele gostaria. Quem vier prestar a última homenagem pode trazer flores, ler um poema, se quiser, nada mais." No poema "Quase epitáfio", Eugénio escreveu: "O outro sabia./ Tinha uma certeza./ Sou eterno, dizia.// Eu não tenho nada./ Amei o desejo/ com o corpo todo.// Ah, tapai-me depressa./ A terra me basta./ Ou o lodo."

Aos próximos, pediu para ser enterrado de pijama e sapatos de quarto. Assim será.

"Já pode reeditar a minha poesia"

Estava doente há três anos. Tinha "uma degenerescência muscular que lhe foi afectando o corpo todo" e obrigou a vários internamentos no Hospital de Santo António, por períodos que Eugénio insistia sempre em reduzir, recorda Arnaldo Saraiva: "Achava que era em casa que devia estar." Deixou de poder ler e escrever, mas continuou a receber a visita de amigos, mantendo energia suficiente para, por exemplo, ir rejeitando a reedição do volume que reúne a sua poesia. "Dizia: "vamos pensar nisso mais tarde, agora não", porque tinha a ideia de que seria a obra última", lembra o presidente da fundação. Assim foi, até certo dia, "talvez há seis meses", situa Arnaldo Saraiva. "Quando eu já ia embora, a descer as escadas, a empregada chamou-me de volta. Subi, e ele disse-me: "Já pode reeditar a minha poesia"."

O novo volume da colectânea está assim, neste momento, em revisão de provas e deverá chegar às livrarias no fim de Julho. Inclui Os Sulcos da Sede, derradeiro livro de poemas originais publicado por Eugénio em 2001, mas não os poemas entretanto dispersos. Porque a indicação que Saraiva diz ter recebido de Eugénio é esta: "A minha poesia é o que publiquei em livro."

Nos últimos dias de Eugénio houve, como sempre havia, flores frescas - orquídeas, frésias. E uma felicidade dada pelo afilhado que o poeta acolheu desde pequeno e fez entrar em tantos poemas. "Ele estava muito feliz porque eu me vou casar em breve", diz Miguel, agora com 25 anos, que vive com os pais no andar por cima do ocupado pelo poeta, na casa da Foz, sede da Fundação Eugénio de Andrade. "O meu padrinho agarrou-se à vida até ao fim, continuava a querer saber das obras, das publicações, das traduções, apesar do sofrimento imenso, de tanto tempo acamado", recorda. "Queria que o salvassem. Essa foi a grande lição, para mim. Apesar de tanto conviver com ele, não tinha noção dessa enorme energia."

Como Eugénio já não podia ler, a mãe de Miguel lia para ele em voz alta. "Lembro-me de ela estar com As Flores do Mal de Baudelaire, a ler algumas coisas que ele pedia. E pedia músicas, às vezes coisas tão simples como ligarmos a Antena 2. Lembro-me de entrar no quarto e ele estar a ouvir o Don Juan, de Mozart. Não tinha forças para pegar numa caneta há ano e meio, mas às vezes ditava versos à minha mãe. Há cinco, seis meses ainda fazia isso."

Arnaldo Saraiva recorda-se de a mãe de Miguel ler a Eugénio excertos das revistas Relâmpago e Textos e Pretextos, que dedicaram as suas mais recentes edições ao poeta. E de Eugénio nos últimos tempos a ouvir Mozart, Vivaldi, Chopin...

Assim o conheceu desde sempre Eduardo Lourenço, no tempo em que se encontraram em Coimbra, ambos jovens: desde sempre "rodeado de música". Tanto que, escreveu Lourenço, era ele mesmo o "deus verde" de um dos seus primeiros e mais célebres poemas: "Sorria como quem dança./ E desfolhava ao dançar/ o corpo, que lhe tremia/ num ritmo que ele sabia/ que os deuses devem usar.// E seguia o seu caminho,/ porque era um deus que passava./ Alheio a tudo o que via,/ enleado na melodia/ duma flauta que tocava."

Desde a Beira

Quando se soube da morte de Eugénio, dobraram sinos em Póvoa de Atalaia, concelho do Fundão. Aqui nasceu o poeta, a 19 de Janeiro de 1923, de um amor juvenil. A mãe, Maria dos Anjos, era filha de trabalhadores modestos. O pai, de família proprietária e mais abastada, partiu para Lisboa, sem casar nem perfilhar o bebé - veio a realizar-se mais tarde o casamento, que não durou muito, e quando o pai se dispôs a perfilhá-lo, o filho recusou. Eugénio de Andrade fez da mãe a presença central da sua poesia, de onde o pai está quase ausente, esse pai a quem em entrevistas apenas se refere como "o senhorito do Monte da Ribeira da Orca".

Da infância na Beira, terra de sua mãe, como a disse, veio a primeira música. "Depois da ceia, arrumada a cozinha, às vezes a minha mãe sentava-se ao balcão e cantava. Cantava um desses romances de que eu entendia melhor o ritmo do que as palavras."

Com a mãe emigrou ainda menino, primeiro para Castelo Branco, depois para Lisboa, onde vive e estuda. Descobre Jack London, Júlio Verne, Eça. Escreve os primeiros poemas aos 13 anos. Conhece António Botto, que o incentiva a publicar numa plaquette o poema Narciso, ainda assinado José Fontinhas, o seu nome de registo. Em breve fixará o pseudónimo Eugénio de Andrade. O seu primeiro livro, Adolescente, sai em 1942, mas o poeta acabará por excluí-lo da sua bibliografia, salvando apenas alguns poemas. Dedica-o a Pessoa - uma das suas referências absolutas, com Cesário, Pessanha, Walt Whitman, Rimbaud ou São João da Cruz.

As Mãos e Os Frutos, de 1948, o livro que inclui por exemplo o Green God citado por Lourenço, é o volume que Eugénio virá a considerar como a sua verdadeira obra de estreia. A recepção é elogiosa, com destaque para Vitorino Nemésio e Jorge de Sena.

Eugénio já passara, então, uns anos em Coimbra, onde conhecera Carlos de Oliveira e Miguel Torga, além de Lourenço; já traduzira García Lorca; já viajara a Espanha e França; já se encontrara com Sophia de Mello Breyner; e desde há um ano trabalhava como inspector dos Serviços Médico-Sociais, emprego que manteve até aos anos 80. Torna-se amigo de Mário Cesariny, convive um pouco com os surrealistas. E em 1950 muda-se para o Porto, Rua Duque de Palmela, 111, onde ficará até ir para a última casa, a da Foz, sempre acompanhado por livros, quadros, flores e gatos.

O seu desejo de ir à Grécia é tão forte que vende uma primeira edição da Mensagem de Pessoa para o cumprir. Voltará várias vezes. Em Espanha, conhece os poetas Vicente Aleixandre e Luis Cernuda. Em Portugal, Yourcenar e Borges. Traduz como quem "troca de rosa" (Safo, Montale, Borges, Neruda, Ritsos...). Constrói uma obra poética que gradualmente o consolida como uma referência no século XX português, muitíssimo glosada e imitada, e traduzida em cerca de vinte línguas.

Do amor à poesia, da sua partilha, dão ainda conta as antologias que fez da poesia portuguesa desde o cancioneiro ao século XX, e os encontros e iniciativas na Fundação Eugénio de Andrade, aberta ao público em 1995.

Palavra a palavra, com palavras que "são de luz/ e são a noite", disse o que buscava. Revelar esse efémero rosto de muitos rostos "esplendidamente respirando na terra" que o levasse a dizer - eis o homem.

Há um verso seu que diz: "Quase se vê daqui, o Verão."

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