Revivalismo colonialista

Noticiava o PÚBLICO do passado dia 23 que o presidente da Câmara de Coimbra, Carlos Encarnação, destacada figura pública do PSD, tomou a iniciativa de recolocar na "renovada Praça dos Heróis do Ultramar" - aparentemente reinaugurada para o efeito... - uma estátua de significado apologético à guerra colonial, representando um soldado com uma G3 na mão e, na outra, segurando às cavalitas uma criança africana. Na cerimónia, toda ela repassada de um misto de nostalgia colonialista, de apologia da guerra colonial e de militarismo serôdio, o presidente da câmara explicou que se tratava de "homenagear os homens que combateram no Ultramar", de uma "homenagem a quem vestiu uma farda do Exército português com o sentimento do cumprimento de um dever". Mais do que isso, o expedito autarca do PSD - que um diligente jornalista do PÚBLICO premiou por estes feitos com um "sobe" no jogo das setas... - explicava tratar-se de recuperar a memória da história portuguesa: "Uma estátua contra o esquecimento", titulava o autor da notícia, visivelmente empolgado com a façanha. Consta que a Brigada Ligeira de Intervenção de Coimbra, do exército, e a Banda Militar da Região Norte abrilhantaram o evento.Não me parece possível deixar cair, nessa grande sopa de apatia e indiferentismo em que se tornou parte da opinião pública portuguesa, este gesto de legitimação e apologia da guerra colonial, sem reacção cívica de quem quer que seja. Como se ela, o regime que a desencadeou e os seus valores se voltassem a inscrever silenciosa e pacificamente em algum panteão consensual de indiscutíveis e respeitáveis valores pátrios.
Esta tentativa de relegitimação do colonialismo e da guerra (e, por essa via, da ditadura), para além da nostalgia remanescente em certos sectores castrenses e politicamente ligados ao passado, conheceu um revivalismo recente pela mão do Partido Popular e de Paulo Portas como ministro da Defesa, no triénio dos governos de direita. A heroicidade da guerra e dos combatentes, a recuperação do colonialismo e da guerra colonial como momentos altos de continuidade histórica com o passado das descobertas e da "expansão" portuguesa, a desculpabilização do salazarismo como fautor de uma "guerra de defesa de pátria", a glorificação indisfarçada do "império", tudo foram temas exaltantemente recorrentes da passagem da extrema-direita pelo poder, com o apoio activo, saliente-se, dos comandos das Forças Armadas, que sempre se associaram activamente a este tipo de discurso e às suas manifestações conexas.
Que um autarca e barão do PSD venha materializar a manobra revivalista de direita e de extrema-direita dando-lhe pública expressão onomástica e iconográfica não surpreende, mas é um sinal de alarme. As direitas têm a liberdade de produzir e fabricar a história do passado e o discurso ideológico sobre ela que bem lhes aprouver. O que temos de decidir é se a comunidade vai permitir que esse discurso colonialista se transforme, através deste e de outros cerimoniais de hegemonia simbólica, na expressão oficial ou oficiosa da sua própria representação do passado recente. Melhor: o que temos de decidir é se fazemos dessa ideologia de ditadura, colonialismo, guerra e militarismo, um património da democracia que se implantou como sua negação.
Na realidade, tentar legitimar o colonialismo e a guerra, é bom lembrá-lo neste 31º aniversário, é uma forma de deslegitimar o movimento militar do 25 de Abril de 1974, que se fez com a preocupação primeira de lhe pôr fim. Foi a consciência de que só a democracia seria capaz de acabar com a guerra colonial que fez os jovens oficiais do movimento evoluir para a imprescindibilidade de derrubar pelas armas o regime vigente e abrir as portas a um novo. A condenação do colonialismo e da guerra colonial estão na génese do "25 de Abril" e da democracia portuguesa, e esse é um bom ponto de partida para se discutir o fundo da questão revivalista.
Em segundo lugar, o revivalismo colonialista omite o facto de a guerra colonial ser uma guerra contra a história, imposta ao povo português como tabu indiscutível pela ditadura, pela censura, pela repressão policial, facto que explica a sua longa duração de 13 anos. Todas as potências coloniais onde havia democracias com liberdade de expressão, parlamentos livremente eleitos e liberdade de associação, se viram obrigadas (ao cabo de alguns anos de sanguinolentas guerras coloniais) a ceder ao peso do cansaço e da oposição às guerras por parte das suas opiniões públicas, sendo obrigadas a encontrar soluções políticas descolonizadoras consonantes com o inexorável movimento descolonizador do pós-guerra. A guerra colonial conduzida pelo fascismo português foi tão injusta como a que conduziram os demais colonialismos contra o direito dos povos colonizados à autodeterminação, mas o regime salazarista e o seu lastro opressivo estão inextrincavelmente ligados à duração, contra tudo e contra todos, de uma guerra que o povo português nunca escolheu fazer e a que se opôs de forma crescente, à medida que lhe era imposta a sua duração sem fim à vista.
Em terceiro lugar, como todas as guerras coloniais, esta foi, sobretudo para o exército colonial, uma guerra sem heróis. Os quase um milhão de homens que ao longo de 13 anos se viram, na sua esmagadora maioria, obrigados a combater em África por uma causa que não faziam sua; os mais de oito mil que, em combate ou não, por lá morreram da parte portuguesa, mais os vários milhares de combatentes dos movimentos de libertação; as populações africanas atingidas, quantas vezes barbaramente, por excessos criminosos do exército colonial; os muitos milhares de feridos e afectados psiquicamente par