O resgate do filme do soldado fuller

Era um decente filme de guerra, agora é um verdadeiro filme de Sam Fuller, cheio daquele absurdo de tablóide, disse o historiador Richard Schickel, responsável pela reconstrução do filme.

Há 15 sequências novas em "The Big Red One: Reconstruction" e 23 delas têm acrescentos, quer sejam pormenores (quase sempre o esgar surrealista que é o toque de Fuller) quer sejam prolongamentos. Quando se estreou em 1980, o filme tinha 1 hora, 53 minutos e 11 segundos; agora tem 2 horas, 42 minutos e 56 segundos. O material novo, cuja existência foi adquirindo proporções míticas para os apaixonados da obra da Fuller ("como os 44 minutos que faltam a "O Quarto Mandamento"", de Orson Welles, disse Richard Schickel, o crítico e historiador que fez deste restauro o seu cavalo de batalha) foi encontrado em caixas, num armazém de Kansas City.

Todas as cenas do argumento, apenas com duas excepções (que se pensa nunca chegaram a ser filmadas), existem agora. Há outra excepção: uma sequência da qual foi encontrada imagem mas à qual falta o som - virá no DVD. E assim Schickel sintetizou numa entrevista: "Aquilo que era um decente filme de guerra é agora um verdadeiro filme de Sam Fuller, cheio daquele absurdo de tablóide - a morte súbita e a gargalhada súbita misturadas de forma selvagem - que era a sua marca".

As novidades, e essa mistura explosiva, neste relato que segue o percurso de Sarge/Lee Marvin, Zab/David Carradine, Griff/Marki Hammill, Vinci/Bobby diCicco e Johnson/ Kelly Ward do Norte de África à Checoslováquia, passando pela Sicília e Alemanha, começam logo no início, com a legenda de abertura, "fulleriana", "This is Fictional Life, Basead on Factual Death". A seguir vem o 1, do emblema da divisão Big Red One, o único acontecimento de cor no prólogo a preto e branco. Lá mais para a frente veremos Sam Fuller, ele próprio, como "cameraman".

São pormenores, mas há sequências inteiras novas: a batalha entre um tanque alemão e forças francesas num anfiteatro romano no Norte de África; o desembarque na Normandia mais extenso, seguindo até ao fim a corrida na praia de Zab - encontra um soldado morto, plano das tripas de fora, o resto de um charuto ao lado na areia, pega no charuto, põe-o na boca, continua a corrida (é isto o "absurdo de tablóide"); berberes a cortarem as orelhas de soldados alemães mortos (o que motiva a moral da história na versão de Sarge/Lee Marvin: "Depois de um combate não se dá pela diferença entre uma orelha americana e uma orelha alemã"); a progressão da divisão por território alemão (o bloco mais sacrificado na versão original) dando maior definição de uma personagem, Schroeder, soldado alemão que era apenas uma sombra em 1980, mas que agora é um duplo de Marvin, o que torna ainda mais vibrante a moral de que na guerra todos são iguais -"a verdadeira glória na guerra está na sobrevivência".

E ainda: a dimensão sexual que irrompe mais alerta. "Isto não é a minha arma", diz Zab, que "tocou" nas costas de Johnson. "Pecebo que esteja excitado, Fritz, mas tens mau hálito", responde Sarge aos avanços de um médico alemão num hospital em Tunis. Ou Sarge a consolar um soldado atingido no baixo ventre: "É apenas um dos teus testículos, Smitty. Podes viver sem ele. Por isso é que te deram dois" - e atira o que sobrou para a areia.

O absurdo. Quando Richard Schickel diz que a versão de 1980 era "um decente filme de guerra" mas que a versão reconstruída é "um verdadeiro filme de Sam Fuller" é a isto que se refere: a uma iconoclastia em permanente excitação e à reafirmação de uma construção episódica que mostra a guerra não como narrativa com princípio, meio e fim (isso é correr o risco de a normalizar) mas como absurdo - as personagens não o são verdadeiramente, são instrumentos de uma alegoria que é activada, como um presente contínuo, a cada novo episódio e mudança de cenário. Na verdade, a distância, o pudor (veja-se como se filma a morte da rapariga que põe flores no capacete de Marvin - como se ela desaparecesse) ou os diálogos como "bombas" de impacto, trabalham uma relutância em mergulhar o espectador no espectáculo. A este propósito vale a pena citá-lo, de uma entrevista: "Não é possível retratar a guerra em termos realísticos, num filme ou num livro. Só se pode captar um pequeno, muito pequeno aspecto da guerra. Se quisermos que os leitores entendam uma batalha, algumas páginas teriam de ser armadilhadas. E para os espectadores de cinema terem a ideia de um combate, teríamos que disparar sobre eles de vez em quando de cada lado do ecrã. As baixas na sala seriam péssimas para o negócio" (Fuller podia estar a falar de "O Resgate do Soldado Ryan", de Spielberg, com que inevitavelmente esta "reconstrução" vai ser comparada, por causa da sequência do desembarque na Normandia - Spielberg coloca o espectador na mira dos atiradores).

Desde os anos 50 que Fuller queria fazer um filme que documentasse a sua experiência na guerra. Em 1959 chegou a ser anunciado um projecto com John Wayne, com grande investimento dos estúdios.

Desaconselhado por gente como o cineasta Richard Brooks ou o argumentista Dalton Trumbo, percebeu que o projecto estava a ser usado como veículo de patriotismo. Não era o que ele queria. "Em vez de me interessar pelos soldados que morreram, pelos que receberam cartas das mulheres, etc., interessei-me pelos que sobreviveram como símbolos. Utilizei-os friamente. Queria mostrar o que de facto vivêramos. Avançamos. Esquecemos imediatamente. Nuca se mostra no cinema a verdadeira frieza do avanço forçado. Avançar, avançar, deixar os outros para trás.

Avançar. Precisava de elementos como o humor dos GI, a sua simplicidade, a sua ironia, a sua honestidade, a sua frieza", disse Fuller.

Wayne ficou para trás, anos depois viria Lee Marvin. Não era preciso dizerem muito um ao outro, Fuller e Marvin (que esteve em manobras no Pacífico, foi o único sobrevivente do seu batalhão). Quando o filme se estreou, na versão amputada, foi considerado obra do passado - por essa altura já Cimino e Coppola tinham feito os seus épicos sobre o Vietname, "O Caçador" e "Apocalypse Now", e nesses tempos de ajuste de contas fantasmagórico, psicadélico e psicótico, um filme sobre a II Guerra, com as suas figuras de um bloco só, foi considerado do passado. Agora, segundo os historiadores, que o Vietname se tornou passado, que a II Guerra voltou a estar no mapa dos ecrãs (graças a "O Resgate...") há nova disponibilidade para o filme de Fuller - para a modernidade, visível, de "The Big Red One: the Reconstruction".

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