O mais difícil na Arquitectura é construir no deserto

O arquitecto precisa de ter referências para imaginar objectos no espaço. Um jardim em
ruínas ou até uma escarpa violenta. O que não pode é construir no vazio. Aquilo que
aparentemente restringe e condiciona é, afinal, o ponto de partida sem o qual "não há estímulo", como explica Siza Vieira nesta entrevista. Por Andréia Azevedo Soares

Jardins intocáveis, declives abruptos ou terrenos sujeitos a cheias dificultam a criação de um edifício? Não, pelo menos para Álvaro Siza Vieira. Sem condicionantes, "não há solicitação, não há estímulo" para que os desenhos sejam prenúncio de obra sobre papel. Para o arquitecto nascido em 1933, não seria possível criar sem as exigências do espaço e do contexto humano. "Essa liberdade é o vazio", define. Na véspera da inauguração da mostra Álvaro Siza - Expor Museus e Espaços, o arquitecto portuense conversou com o PÚBLICO durante 13 minutos. Tempo suficiente para falar não só sobre o que sente em relação aos seus projectos nunca realizados, como o do Stedelijk Museum, em Amesterdão, mas também sobre corpos arquitectónicos ainda em formação. É o caso do Museu Iberê Camargo, em Porto Alegre, Brasil. uma estrutura acomodada entre uma escarpa abrupta e a imensidão do rio Guaíba. PÚBLICO - Dos 18 projectos que integram esta mostra, apenas oito foram (ou estão a ser) construídos. O facto de os projectos arquitectónicos por vezes não saírem do papel provoca em si um sentimento de trabalho em vão?
SIZA VIEIRA - Em vão nunca é. São experiências que ficam. Não acaba ali. Prolonga-se em algum outro projecto. Agora, muitas vezes é um desgosto. Algo doloroso. Sobretudo quando já foi elaborado um projecto de execução, que é um documento fatigante, com montanhas de estudos e cálculos. Para o Stedelijk Museum [em Amesterdão], trabalhei durante oito anos em dois projectos de execução que acabaram por não ser levados adiante. É penoso.
Parte dos seus projectos de museus levou-o a criar um objecto arquitectónico capaz de dialogar com jardins preexistentes. Costuma falar sobre a sua preocupação em não "ferir" ou "agredir" os jardins com o seu projecto, como se estivesse a tentar relacionar-se com uma mulher frágil...
Não é uma mulher frágil. Estamos a falar de jardins consolidados de rara beleza, como o de Santo Domingo de Bonaval [ao lado de onde foi construído o Centro Galego de Arte Contemporânea], em Santiago de Compostela, ou este da Fundação de Serralves. Portanto, é um valor e é também um indicativo para o desenvolvimento do projecto. Um jardim desta qualidade é um apoio e uma obrigação - mesmo que o arquitecto não estivesse preocupado com isso, seria obrigado a preocupar-se. Mesmo em Serralves, no início houve polémica e o receio de que o edifício fosse matar o jardim.
Esse valor funciona como inspiração ou como condicionante?
Condiciona ajudando o meu trabalho. E inspirando-me. O que é mais difícil em Arquitectura é construir um edifício no deserto. É terrível, não há referências. Ou então uma coisa que me aconteceu uma vez: uma pessoa que queria fazer um grupo de casas, uma colónia de habitação. Fez um discurso a um grupo de arquitectos de vários países: "Cada um de vocês tem uma casa para fazer nestes lotes, faz a casa como quiser, o único condicionamento é X de dinheiro, porque eu quero dar liberdade aos arquitectos". Começámos a olhar uns para os outros até que um de nós disse: "Mas nós não queremos essa liberdade". Essa liberdade é um vazio. Não há solicitação, não há estímulo. É evidente que um jardim é um apoio extraordinário, um apoio que pode ser difícil, mas que conduz a qualquer coisa.
Foi o que aconteceu com a criação do Museu Iberê Camargo, quando se viu "encurralado" entre o rio Guaíba e um declive brutal? Tais condicionantes facilitaram a concepção deste edifício em construção em Porto Alegre, que deverá acolher mais de quatro mil obras do artista Iberê Camargo (1914-1994)?
O primeiro contacto que tive foi através de uma fotografia. Fiquei assustado. Pensei: "Como é que se pode fazer isso?". Mas é vencendo os obstáculos e os condicionamentos que se dá lugar a uma ideia sólida. Não se pode dar lugar ao gratuito, para que no final as pessoas olhem e digam: "Tinha de ser assim". É claro que é uma abstracção, não tem nada de ser assim. Conformou-se por causa dos condicionamentos muito pesados que havia ali.
Parece que já falámos de duas forças opostas. O jardim pressupõe uma aproximação cuidadosa, desvelada, ao passo que o terreno conquistado para o Museu Iberê Camargo implica uma violência contra a rocha, uma escavação brutal.
Não, a rocha já estava escavada quando eu lá cheguei.
Sim, mas ocupou um espaço onde houve um confronto mineral. O lugar parece guardar esta marca simbólica.
Sim, foi o terreno que me foi fornecido, não havia outro. Mas não é nenhuma violência. É como colmatar um buraco que, de outra forma, seria desinteressante. A função primeira da Arquitectura é tornar belo o que não o é, embora muitas vezes aconteça exactamente o contrário: um belo sítio começa a ser ocupado e, justamente por ser belo, transforma-se num horror - como são as praias do Sul de Portugal e da Espanha. As pessoas querem ocupar o belo, mas se não o fazem com atenção e cuidado, acabam por destruir. Mas ali [em Porto Alegre], o que se fez foi dar sentido a um buraco abandonado...
E evitar o desperdício de um buraco inútil debruçado sobre uma paisagem deslumbrante. Aliás, até nas rampas que se descolam do edifício, como se fossem túneis externos que compensam a verticalidade da construção, há minúsculas janelas com vista para o rio.
Há duas explicações para isso. Uma é essencialmente prática. Se quero ter um caminho suspenso - sem apoios, sem pilares - de grande dimensão, tenho de reduzir as aberturas, porque, caso contrário, a estrutura não se aguenta. Aquele tubo é todo ele como uma viga presa de um extremo ao outro. Esta é uma razão estrutural, de raiz, que explica a limitação de aberturas. Depois, aquilo [as tais janelas] permite como que uns quadros que recortam a paisagem - que é belíssima e de grande extensão - de uma forma muito... [longo silêncio].
Como o deslumbramento depois da privação?... A sensação de alguém que volta ao Mundo após semanas numa cela solitária?...
Exactamente. É uma aparição. Aliás, uma sequência de aparições que tem mais impacte do que um grande envidraçado. Para isso, mais vale estarmos cá fora. Aquele rio é belíssimo, mas não é para estar sempre a ser visto. Eu poderia contar agora uma experiência que tive muito novo, quando estava doente dos pulmões. Não podia deslocar-me, ficava todos os dias a descansar numa varanda da aldeia.
Qual era a aldeia?
Era uma aldeia que hoje já é cidade: Famalicão. Era sobre o vale de Famalicão - belíssimo - que eu ficava sentado. Não havia antibióticos e [o que os médicos recomendavam] era repouso absoluto. Ao fim de 15 dias, eu já odiava aquela paisagem. Porque era uma coisa imposta. E isso marcou-me muito. Raramente faço grandes envidraçados, como se estivesse no exterior. Para isso, eu vou para o exterior. Na casa deve haver um doseamento da aparição do exterior. E, num museu, deve haver paredes.

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