E agora, algo completamente diferente...

Quando Quentin Tarantino, presidente do júri, falou nele ainda antes do festival começar, o destino ficou traçado nessa edição (a de 2004) do Festival de Cannes: para "Oldboy", de Park Chan-wook, iria o Grande Prémio do Júri, recompensa lida como escolha pessoal do realizador de "Kill Bill", e para "Oldboy" ia a inevitável condenação ao culto e à condição de "filme da moda" (assim chegou ao Fantasporto, onde recebeu o prémio da secção Novos Realizadores).<p/>

E assim, em Cannes, se oficializava uma mudança de referências nos cultores dos cultos: Coreia do Sul. (rezam as crónicas que depois da cerimónia de entrega dos prémios, a actriz Tilda Swinton, outro membro decisivo desse júri, terá avisado Park Chan-wook que Tarantino iria roubá-lo; isto é: o grande mestre do crime iria fazer com o cinema dele e com o filme dele o que já fizera com os "thrillers" de Hong Kong).

Portanto: "Oldboy" assinala o momento em que, onde antes se lia "Hong Kong", se lê agora "Coreia do Sul".

Os dados já tinham sido lançados, há algum tempo que proliferavam nos festivais mais nomes difíceis de memorizar - nunca se tem a certeza onde colocar os hífens... - e ecos de uma indústria que passou a ser os olhos da Ásia e onde os filmes de Hollywood mal conseguem meter o pé.

Tudo terá começado em 1998, com um filme de espionagem chamado "Shiri", de Kang Je-gyu, em 1998, que foi também um sucesso de exportação, para Hong Kong e para o mercado japonês. Em 2003, "Silmido", de Kang Suk-woo, épico sobre um grupo de soldados treinados para se infiltarem na Coreia do Norte, fez mais de 11 milhões de espectadores (num país de 48 milhões), e foi por aí que se começou a colocar a fasquia, para a chamada "era dos 10 milhões" de espectadores. Dados até 2004, publicados na revista Time: nos 10 filmes mais vistos de sempre na Coreia do Sul só figura um que não é coreano, o inevitável "O Senhor dos Anéis" - mas só em quinto lugar; 62 por cento é a fatia de mercado ocupada pelo cinema nacional, que tem um sistema de protecção de quotas; de 2003 a 2004 o número de espectadores aumentou de 64,6 milhões a 110 milhões; Coreia do Sul é a nova Hollywood da Ásia: como os americanos vão a Los Angeles, assim os asiáticos vão à Coreia visitar os lugares onde foram rodados os seus filmes favoritos.

O que é que lá se passa? Uma reformulação dos géneros (como antes em Hong Kong), a partir do cinema americano e japonês (a influência do burlesco elíptico de Takeshi Kitano é notória) e depois da devida reapropriação. Uma obsessão em figurar o trauma nacional - a separação, desde 1948, das duas Coreias -, o que inunda esses filmes de uma violência desesperada que desliza para o grotesco e "gore". Essa presença da História também se manifestou nos anos 80 na chamada "nova vaga" de Hong Kong (nesse caso tratava-se da inquietação perante o horizonte de devolução do território à China), mas o que é igual também é diferente ou particular: a abordagem não é metafórica, elíptica, expectante (ou lírica como nos "thrillers" crespusculares de John Woo), é um cinema pulsional, de catarse. E o segredo deste sucesso estará na forma como o "nacionalismo" dos filmes coreanos tem permitido o reconhecimento universal (ou pelo menos um universalismo asiático).

Há coisas para vários gostos: do "blockbuster" formatado à medida da "era dos 10 milhões" aos objectos pessoais de cineastas mais originais, como Hong Sang-soo ("La femme est l"avenir de l"homme" é o último filme de um magnífico cineasta marcado pelo cinema francês, e pela obra de Robert Bresson ), Jang Sun-woo ("Timeless, Bottomless, Bad Movie", impressionante mural sobre a juventude das ruas de Seoul, foi um dos acontecimentos do Festival de Berlim de 1997) ou Lee Chang-dong ("Peppermint Candy", de 1999, "Oasis", de 2002). Ou ainda a figura de um "clássico", de 68 anos, Im Kwon-taek (mais de 90 filmes, o último dos quais, "Low Life", revela uma truculência e um anarquismo "fuellerianos"). Ou uma "estrela" que está a ser "fabricada", Kim Ki-duk ("A Ilha", "Primavera Verão...").

Park Chan-wook tem-se vindo a colocar numa posição intermédia, mais indefinida. O filme com que deu nas vistas, "Joint Security Area" (1999), revelava uma concisão narrativa industrial próxima do cinema clássico americano, até da série B: tudo se passava num cenário único, um barracão na fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, onde decorria uma investigação para tirar a limpo a morte de um soldado norte-coreano supostamente abatido pelo Sul no "cumprimento do dever". Foi um enorme sucesso, mas nada levaria a crer que fizesse depois uma coisa chamada "Vengeance for Mr. Simpathy", nada prometia esse realismo minimalista que amplia sinais e sons como se a câmara fosse uma lupa de crueldade. Périplo de vingança de um pai, depois da filha ter sido raptada, foi o filme que iniciou o culto e é o primeiro de uma trilogia sobre a Vingança de que "Oldboy" é o segundo tomo. De novo, Park Chan-wook alargou o espectro das características do seu trabalho - embora se note que mantém relação privilegiada com o que a câmara mostra e esconde, e o que esconde, no seu caso, é tão gritante como uma explicitação: veja-se em "Vengeance for Mr. Simpathy" a cena em que um pai assiste à autópsia da filha ou em "Oldboy" à sequência em que o protagonista quer cortar a língua. E assim, a descrição, mais ou menos objectiva, da cadeia de danos causados pela vingança ("Vengeance for Mr. Simpathy"), dá lugar ("Oldboy") ao mergulho na mente de um danado, um homem que esteve 15 anos fechado num apartamento e que depois de se ver cá fora só tem uma ideia em mente: descobrir quem lhe tramou a vida. Barroco, abstracto, exercício lúdico e grotesco sobre a paranóia, as cenas estão investidas de uma auto-consciência que lhes retira qualquer realismo e as faz permanecer num limbo de experiência ou de ensaio (as cenas de violência, de luta, parecem mais simulações burlescas dos gestos que se fazem nos "thrillers"). Tarantino pode roubar, mas há aqui muitas coisas que o cineasta de "Cães Danados" também reconheceu como suas ...

"Os filmes que não conseguem gerar um interesse comercial massificado logo na primeira semana de distribuição desaparecem no fim de semana seguinte", disse numa entrevista. "É esta a sombra a pairar na era dos "10 milhões de espectadores". Em termos de cinema temos ainda caminho a percorrer. Ainda não produzimos um virtuoso como Kurosawa ou Ozu, ainda nos falta a personalidade explosiva da 5ª Geração do cinema chinês que trabalhou em conjunto para pôr cá fora grandes filmes como "Terra Amarela" ou "Milho Vermelho". No entanto, o facto de haver uma variedade enorme de realizadores com potencial ilimitado a trabalhar na indústria, a fazê-lo de forma incansável, o facto de ainda serem jovens, não dominados por nenhuma figura tutelar carismática, o facto de não estarem afastados dos espectadores, o facto de haver produtores motivados pelo aspecto artístico dos filmes, e de haver um fluxo contínuo de capital para realizadores competentes, isso permite-nos ver de forma positiva o futuro da indústria coreana de cinema".

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