De quem é a vida afinal?

Depois do sucesso de prestígio de "Abre los Ojos" e da carreira internacional de "Os Outros", e depois de dirigir Nicole Kidman, Alejandro Amenábar tornou-se nome de referência no cinema espanhol e não só.

Todos lhe reconhecem uma espantosa capacidade para encenar visualmente, para contar uma história com imaginação e originalidade, com a noção dos limites do campo e uma apetência especial pela direcção de actores. Talvez mesmo porque a fasquia estava colocada a nível muito alto, "Mar Adentro" é uma desilusão: não existe nunca um claro ponto de vista, a definição do meio rural galego, dentro de um regionalismo indeciso e, por vezes, quase folclórico, não resgata a ficção de um tom de reportagem, entre o neutro e o moderadamente militante. A que poderia ser a sequência mais forte, o confronto de Ramón Sampedro com o padre tetraplégico, fica-se pela retórica bem intencionada, iludindo a violência potencial de dois modos opostos de configurar o sentido da vida.

Quando pensamos, em termos temáticos, na questão da eutanásia, um filme surge como referência, vindo, aliás, do "mainstream" americano, "De Quem É a Vida Afinal?" (1981), de John Badham, com Richard Dreyfuss a conferir-lhe um tom militante inequívoco e uma desesperada grandeza. Recentemente, Clint Eastwood, no genial "Million Dollar Baby", e com uma serenidade total, evita a moralidade e poetiza a eutanásia como um acto de amor até à morte. Amenábar fica no meio, num terreno de ninguém, que se pretende complexo, mas que acaba por anular a fabulosa composição de Javier Bardem, não resistindo a "flashbacks" redundantes do acidente e a vistosos planos de helicóptero para trazer "o cheiro do mar". Bardem assume toda a serenidade e secura discursiva do mundo e uma lógica imbatível, que o filme nunca parece compartilhar, construindo constantes contrapontos melodramáticos, com o irmão a "puxar ao sentimento" e a "namorada" a justificar, de forma quase irracional, a assistência na morte. Apenas a figura do sobrinho, aquele que não entende nada do que está em jogo, parece funcionar como o necessário "outro" para justificar a simplicidade da aceitação do direito individual de morrer.

A história paralela da advogada, com uma doença degenerativa, em vez de adicionar dados acaba por moralizar fora de tom, por retirar à figura de Bardem, que se queria que "tivesse razões", a força de único motor da acção. Por outro lado, os militantes pelo direito à escolha não passam de meros títeres de uma causa política, "simpática", mas distante do essencial. Neste contexto, a publicação do livro de poemas da personagem, Sampedro, reveste-se de ambíguos contornos: em vez de insistir na sua função como "confissão" individual, insiste sobretudo no valor mediático para influenciar um caso político. Por isso dizemos que o filme falha a nível do ponto de vista: ter um actor como Bardem e desperdiçar o seu olhar de morto-vivo e a sua vontade férrea, para se dispersar em mil pormenores acessórios, é um grave erro de cálculo ficcional.

Não se defende aqui uma demagógica anulação do muito que implica uma decisão como a cessação voluntária da vida, sobretudo quando necessita de uma terrível cumplicidade assistencial. Bastava, no caso vertente, que a "vítima" liderasse o processo, que o seu olhar decidisse, sem tantos intermediários e agentes mediadores, por vezes contraditórios. Se o "direito à vida" é algo de sério e complexo, o "direito à morte", por vontade própria e expressa também o deveria ser. Nota final e conclusiva: as duas estrelas, dadas a este filme hesitante, vão inteirinhas para esse enorme actor que é Javier Bardem.

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