Um caminho de dois sentidos

O risco maior que a Europa corre é não levar a sério o esforço diplomático americano. Não que os europeus não queiram reduzir as tensões transatlânticas e restabelecer com Washington relações mais cordiais e distendidas. Mas não para que tudo fique na mesma

1.Os americanos não costumam fazer as coisas por metade. Decidiram que a Europa era, afinal, um aliado importante para os seus objectivos internacionais, que a tentativa de jogar na sua divisão não rendeu grandes dividendos, que precisam dela para o Iraque e que, sem ela, a nova doutrina Bush sobre a importância da liberdade não faz grande sentido. A presença de Condoleezza Rice e Donald Rumsfeld na Europa - a primeira num longo e intenso périplo diplomático, o segundo nas reuniões da NATO e de Munique - representa, em termos práticos, uma ofensiva diplomática impressionante que a Europa vai ter de levar em conta quando receber, na próxima semana, o Presidente George W. Bush em Bruxelas. Ambos - "Condi" e Rumsfeld - foram particularmente duros com a Europa no primeiro mandato de Bush.
Rumsfeld é o autor da frase sobre a "velha" e a "nova" Europa que incendiou o Velho Continente há dois anos, mas também que melhor simbolizou uma alteração fundamental da política externa da América - deixar de apostar na integração europeia para passar a apostar na sua divisão. Pela primeira vez desde a Segunda Guerra uma administração americana via numa Europa cada vez mais unida um perigo para a supremacia americana no mundo.
Rice condenou impiedosamente a França e a Alemanha pela oposição à guerra no Iraque, cunhando outra frase que fez história do lado de cá do Atlântico - "perdoar a Rússia, ignorar a Alemanha, punir a França". Académica, especialista em questões soviéticas, a secretária de Estado americana esteve directamente envolvida na gestão da crise da reunificação da Alemanha no início dos anos 90, na sua qualidade de conselheira do antigo Presidente Bush. Num livro que escreveu sobre essa experiência, Rice tira algumas conclusões pouco elogiosas para a Europa. Basicamente, que sem a determinação norte-americana de apoiar Helmut Kohl - contra a vontade de Mitterrand e de Thatcher - e o seu plano, as coisas ter-se-iam passado de modo muito diferente e muito pior
A mesma Rice veio agora à Europa dizer que a diplomacia americana mudou. Afastou as questões mais polémicas - o Irão e a China - que continuam a dividir. Centrou-se nas que unem ou podem vir a unir, como o conflito do Médio Oriente e, também, o Iraque. E veio dizer que, feitas as contas à experiência do primeiro mandato de George W. Bush, Washington resolveu de novo apostar na relação transatlântica e na Europa.
A que se deve a conversão? Sobretudo às consequências da guerra do Iraque. O Iraque demonstrou a Bush que a América precisa dos aliados europeus - não para vencer uma guerra, mas para ganhar a paz -, e que a pior das consequências da sua decisão unilateral de derrubar Saddam foi, talvez, a redução da sua capacidade de influência no mundo. A estratégia que seguiu no Iraque acabou por traduzir-se globalmente numa perda, e não num ganho, para resolver problemas tão sérios como o Irão ou a Coreia do Norte.
Dizem os analistas de ambos os lados do Atlântico que a esta mudança diplomática não corresponde uma mudança de estratégia. É verdade. Mas não deixa por isso de ser importante e a Europa tem de encontrar formas de capitalizar essa nova atitude diplomática - que parece ter deixado para trás a arrogância vexatória - para poder ganhar alguma capacidade de influenciar as opções estratégicas dos EUA no futuro.

2. A Europa que Bush visita na próxima semana também é diferente daquela que existia em plena crise iraquiana. As divisões europeias dramaticamente reveladas pelo Iraque não desapareceram. Londres continua a olhar para o mundo de forma diferente de Paris. O anti-americanismo que contagiou a opinião pública europeia é um dado incontornável, mesmo que comece agora a dar sinais de regressão. Mas houve algumas coisas que os europeus também aprenderam. Que a sua influência é quase nula quando se dividem. Que o mundo é demasiado perigoso para dispensar os Estados Unidos. Que não haverá consenso sobre a acção externa da UE enquanto os europeus estiverem divididos sobre a relação transatlântica.
O reflexo destas lições é hoje visível na iniciativa diplomática dos três "grandes" europeus no Irão. Ou na opção britânica de influenciar por dentro uma decisão sobre o levantamento do embargo de armas à China, em vez de se opor a ela. Ou ainda na decisão do primeiro-ministro britânico de eleger para a sua presidência do G-8 temas que são caros à Europa mesmo que irritem os Estados Unidos. Do aquecimento global a África.
Bush vai encontrar Londres, Paris e Berlim mais empenhadas em cooperar sobre os grandes temas da agenda internacional - e, goste-se ou não, é isto que verdadeiramente conta para a Europa poder falar "a uma só voz". Mas vai descobrir também que mesmo os seus aliados indefectíveis, como a Polónia (ou Portugal), se sentem mais confortáveis a dar-lhe apoio no quadro europeu do que numa simples e por vezes incómoda relação bilateral.

3. O risco maior que a Europa corre é não levar a sério o esforço diplomático americano. Não que os europeus não queiram reduzir as tensões transatlânticas e restabelecer com Washington relações mais cordiais e distendidas. Mas não para que tudo fique na mesma. Blair disse a Rice, em Londres, que se a América quer que o resto do mundo faça parte da agenda que fixou para o mundo, também tem de aceitar ser parte da agenda do resto do mundo. "Condi" respondeu-lhe em Paris: "A América está pronta a trabalhar com a Europa numa agenda comum, a Europa deve também estar pronta para trabalhar com América."
Como e onde - é a questão. O conflito do Médio Oriente pode ser, com sorte, a questão através da qual os dois lados podem começar a recuperar alguma da confiança mútua, que perderam. A União tenciona centrar a sua reunião com Bush em Bruxelas, no dia 22 de Fevereiro, no Afeganistão (para além do Médio Oriente), tentando fazer dele o exemplo de cooperação "exemplar" - tudo se passou de acordo com a lei internacional e, por isso, os europeus não poupam esforços, incluindo militares, para ajudar.
O problema é que não é no Afeganistão que se joga a política externa americana. Se a Europa não perceber que é no Iraque que a América joga a sua influência e o seu prestígio e que também aí tem de encontrar formas de ajuda efectivas, não vale a pena esperar muito desta reaproximação. E nem se trata de franceses e alemães continuarem a dizer que não haverá "fardas" suas dentro das fronteiras iraquianas. Isso os americanos até podem aceitar. Trata-se sobretudo do apoio político, a troco da decisão americana de envolver-se a sério no Médio Oriente. A Europa - neste caso, seria melhor dizer a França - não pode aceitar a mão estendida de Bush e continuar a tratar Bush como um "agressor" do Iraque ou um perturbador da ordem internacional.
O chefe da diplomacia alemão, Joschka Fischer, defendeu na reunião de Munique "um Ocidente renovado" capaz de ser "a espinha dorsal de uma nova ordem internacional". Trata-se de saber também se é nisto que a Europa acredita e se é isto que quer.

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