KO por amor

De Clint Eastwood costuma dizer-se que é "o último dos clássicos". A expressão tem validade, para além da fórmula publicitária. Eastwood, de todos os realizadores (e actores) em actividade no cinema americano, é dos poucos (se não for o único) através de quem se pode fazer um "link" directo para a época clássica do cinema americano. Nos anos 50, década comummente referida como a do fim dessa época, já por lá andava a fazer filmes. E se nos lembrarmos que ele foi, por exemplo, actor do último filme de William Wellman ("Lafayette Escadrille", de 1958) então o "link" para o "coração" dessa época torna-se ainda mais profundo e impressionante. Para não falarmos de Don Siegel, cineasta doutra geração, nem de Sérgio Leone, cineasta ainda doutra geração, que já podia trabalhar a partir de um "espelho" para o cinema clássico.

A raiz do cinema de Eastwood é essa, ancestral - num certo sentido, o seu cinema é tão "pós-clássico" como o de Leone ou o da geração dos "movie brats", mas nele, por razões de proximidade e antiguidade, dir-se-ia não haver nenhuma "re-invenção" nem nenhuma "re-fundação": apenas uma questão de natureza, como se ali, no seu cinema, se inscrevesse a consciência do fim de uma "linhagem". Uma questão de natureza, repete-se, coisa quase ontológica.

"Million Dollar Baby - Sonhos Vencidos", filme que toca o "melodrama" sem ser exactamente um "melodrama" (como não é seguramente "filme de boxe"), é um exemplo quase extremo. Tudo se joga em sobriedade e economia de meios, tudo se joga na concentração e progressão da narrativa - mas ao mesmo tempo tudo se joga também num constante pingue-pongue entre a transparência (a sensação de que se vê tudo e se sabe tudo o que há para ver e saber) e a obscuridade (a sensação oposta: a de que não se vê nada nem se sabe nada, do que é verdadeiramente importante, pelo menos). Pequeno exemplo anedótico: em "Million Dollar Baby" há incontáveis referências à relação entre a personagem de Eastwood e a sua filha, sempre ausente do filme; percebe-se que essa relação (ou algo que aconteceu a essa relação) é causa de grande inquietação, e que muito da relação entre a personagem de Eastwood e a de Hilary Swank tem origem nessa incomodidade. Pois bem, digamos assim: como espectador, é uma alegria imensa perceber que se chega ao fim sem que nada, absolutamente nada, dessa questão tenha sido explicitado. O que aconteceu ninguém sabe - é o mistério, é o pudor da biografia. Sabemos apenas que a personagem de Eastwoodn corre (e faz correr) em busca de uma pacificação interior (assim como frequenta uma igreja católica e faz perguntas insolentes ao padre que já não o pode ver à frente). Não precisamos de saber mais - e que esta "economia" do saber transformada em mistério e pudor (em obscuridade no meio da transparência) não é uma regra aprendida no "clássico" eis o que ninguém se atreva a negar.

Mas podemos saber isto: a personagem interpretada por Hilary Swank é candidata a boxeur e procura a personagem de Eastwood (um velho treinador que acabou de ficar sem o seu pupilo) para a ajudar. Ele está resiste em aceitá-la, mas a persistência dela convence-o. Ela tem uma carreira em ascensão rapidíssima, chega à beira de ser campeã do mundo, mas acontece um acidente que a atira para um hospital...

Já se explicou alguma coisa, é inevitável que se toque em mais qualquer coisa do desfecho (o filme vive da preservação em segredo do seu desenlace, portanto cautela, mais vale ler depois). "Million Dollar Baby" é, pela inquietação e pelo desconforto permanente da personagem de Eastwood (esse treinador de boxe que acaba de ficar sem o seu protegido, que o trocou por um manager mais ambicioso), um filme próximo de "Um Crime Real" - que, lembremos, mostrava Eastwood na pele de um jornalista para quem salvar um inocente da pena de morte se confundia com a sua própria salvação. A energia "escura" de "Million Dollar Baby" é da mesma ordem: pressente-se sempre que em causa estão coisas de extraordinária importância como são as coisas de matriz religiosa (e nesse sentido o muito curioso o "despique" de Eastwood com o padre e com a Igreja). Ainda mais curiosamente (mas o republicano Eastwood não cessa de nos surpreender), essa relação articula-se numa área especialmente sensível, em termos religiosos e políticos, como é a eutanásia. E nesse sentido (citar Robert Bresson é um disparate a propósito de um filme de Eastwood mas aqui é irresistível...) "Million Dollar Baby" é um filme sobre um "drôle de chemin", e o que comove, no fim, é tanto a perspectiva do "chemin" como a sua bizarria.

Adiante, rumo a matérias mais palpáveis. Reparar, por exemplo, como Clint filma a segunda parte do filme (depois do acidente de Swank) de modo não muito diferente do que filmara a primeira parte (com os treinos e os combates de boxe): cada cena, cuidadosamente delimitada por "fondus" a negro, tem a energia de um "round" de um combate - e é, toda esta segunda parte, com Swank confinada a uma cama de hospital, um longo combate, agora entre o treinador e a sua pupila. Reparar no modo como Clint se filma a si próprio, na suprema discrição com que obscurece o seu rosto nalguns momentos (quando chora, por exemplo): há o Clint "impúdico" (o de "Space Cowboys", por exemplo) que gosta de se filmar de tronco nu, "Million Dollar Baby" é um filme do Clint "pudico", que esconde o corpo. Reparar no ginásio, filmado em magníficos movimentos de câmara e planos gerais, e perceber que ele tem a mesma função de porto de abrigo para deserdados que um "saloon" de "western", por exemplo, espaço quente e integrador, "familiar". E reparar, finalmente, nesse extraordinário par formado por Clint Eastwood e Hillary Swank, protagonistas da mais bela história de amor não-declarado dos últimos anos. Não declarado? Enfim, tanto quanto: os velhos clássicos também não declaravam coisa alguma.

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