"Bigger life" em pequeno ecrã

Quinze anos depois de investigar, escrever e procurar dinheiro para o seu projecto, na Primavera de 2003 o realizador Taylor Hackford percebeu que chegara o momento: apresentar Jamie Foxx (um comediante de 36 anos que, poucos o sabiam, até tivera uma bolsa para estudar piano...) a Ray Charles.

Começou por ser o que se esperava: Ray entrou a matar, sentando-se ao piano, tocando ora mais funky, ora mais blues, puxando por Foxx até ver onde ele chegava; um dia, levou o actor para o território de Thelonious Monk, jazz não era o forte de Foxx, mas o pretendente aguentou-se, e foi então, contou Hackford, que Ray se levantou, sacudiu o corpo com os espasmos que lhe pertenciam, e disse: "The kid''s got it. He''s the one".

Resumindo o que ficara para trás: o projecto passou de estúdio em estúdio, porque era um "biopic", porque a personagem principal era um negro que nascera no sul racista, durante a Depressão, no meio de pobreza imensa que só lhe permitiu usar sapatos pela primeira vez aos 7 anos.

Nem o facto de ser uma história de sucesso - Ray até teve o seu avião particular... - nem de estar em causa um dos maiores "songbooks" americanos - r&b, pop, gospel, country & western - facilitou as coisas, que só se concretizaram com a entrada em cena de um milionário, Phil Anschutz (a quem pertence parte dos Los Angeles Lakers), e de 30 milhões de dólares.

"Hollywood não é corajosa quando se trata de ''biopics''. Acham que os ''biopics'' devem ir parar à televisão. De ''biopics'' e de figuras negras ainda gostam menos. Ninguém queria financiar o filme", contou Hackford.

Perante estes factos, não se pode deixar de admitir que este é um "trabalho de amor", embora nada garantiria que seria cinematograficamente frutuosa a paixão de um cineasta (tão maquinal como Hackford) por uma obra (como a de Ray Charles Robinson - o "Robinson" Ray Charles deixou-o cair quando o "boxeur" Sugar Ray Robinson se tornou famoso).

Alguma imprensa americana encontra nos filmes de Hackford uma proximidade ao universo da pop, digamos assim, porque, foram argumentos utilizados, filmes como "Oficial e Cavalheiro" (1982) ou "Against All Odds" (1984) se apoiavam em "hits" musicais, ou porque Hackford produziu "La Bamba" (1987), "biopic" de Richie Vallens. Argumentos assim nada dizem sobre uma hipotética disposição natural para filmar "Ray". Ou então (e aí, sim, vamos dar às canções de "Oficial e Cavalheiro"...) quando se fala de "universo da pop" quer-se significar algo que está reduzido a uma série de etapas reconhecíveis e instrumentais (o trauma da morte de um irmão; a cegueira; o mergulho na heroína...) para se chegar a um resultado previsível, a oficialização. Não há droga, infidelidade ou incapacidade física que projectem o espectador para o abismo da personagem. É isso o que também faz um programa da série "Behind the Scenes" da MTV (a propósito: poucos meses antes de Ray morrer, Hackford motrou-lhe uma versão provisória de "Ray"; meteu a cassete num leitor de vídeo, e ao fim de ouvir algumas cenas, Ray sentenciou: "Estou satisfeito, Taylor. Estou muito feliz". Faz sentido: captou o modelo de consagração oficial do pequeno ecrã).

Hackford não é, decididamente, "the one". E Jamie Foxx? Só se fala dele para o Óscar - mas não se falará tanto dele porque não há acontecimento no resto do filme? É verdade, Foxx faz tudo (só não se atreveu a cantar, apesar de ser cantor - descubram-no em "Slow Jamz", com Kanye West): a cegueira, os movimentos, a forma de falar, os espasmos do heroinómano. Mas nunca sentimos ali Ray Charles, o homem e o seu tempo. Está ali um malabarista em arrojada proeza.

Vasco Câmara

(PÚBLICO)

Sugerir correcção
Comentar