Da baía do corpo à serra das almas

A digressão "De Corpo e Alma", a primeira dos Delfins em formato acústico, e que está ainda nos primórdios, passou sexta-feira por Sintra, num Olga Cadaval lotado. Decomponhamos os dois factores. Acústico nos parâmetros gerais (piano de cauda, bateria, guitarras e baixo acústico, palco despojado, cores sóbrias, os seis golfinhos sentados, arranjos diferentes dos originais), mas com alguma electricidade - as teclas de Luís Sampaio ou a harmónica pré-gravada de "Baía de Cascais". O público... é este o público que o grupo de Miguel Ângelo deseja? Os espectadores presentes em Sintra estão longe da "agit-pop" que o vocalista defende. São, sim, pessoas que sentem, algures, um laivo de rebeldia e independência, mas sabem também epidermicamente que nunca poderão optar pelo estilo de vida que implicaria ser efectivamente "desalinhado". Um pouco como os próprios Delfins. E tanto a banda como o seu público sentem esta divergência insuperável, que transforma estas ocasiões, simultaneamente, em acolhedoras e agressivas. O espectáculo foi um regresso a um dos locais preferidos da banda, de onde a inevitabilidade de "A casa de Sintra". Cantada pelo guitarrista Fernando Cunha, foi, juntamente com "Através da multidão", um dos momentos em que se notou que o corpo das versões não está ainda em perfeita sintonia com a alma - note-se alguns desfasamentos vocais, a que por vezes se juntaram o baixista Rui Fadigas e o baterista Jorge Quadros a puxar os tempos em diferentes direcções. De resto, foi uma grande - 24 canções, quase duas horas - revisitação de uma carreira de mais de duas décadas. No extremo oposto às longas "funky jams" com solos de guitarra progressiva que eram a marca do grupo ao vivo na passagem dos 80 para os 90, assistiu-se a algumas revisitações conseguidas. Antes de mais, o dueto quase obscenamente despido entre Miguel Ângelo e Dora Fidalgo, a grande voz convidada, ao som do piano, em "Os melhores anos das nossas vidas", ou a versão para banda de "+ amor", na prática uma nova canção, que deixou de ser uma oração de amor platónico para se tornar um brado sensual - muito devido ao baixo do "capitão Fadigas". Um inédito, "Insónia", é um neo-reggae amparado pelo órgão. O resto foram os "standards", desde os inocentes "Nasce selvagem" e "1 lugar ao sol" aos maduros "A queda de um anjo" e "Aquele Inverno". No final, percebe-se que "De Corpo e Alma" não é tanto uma recuperação de temas esquecidos, mas mais uma forma de a banda se conciliar com a idade e com a percepção de que afinal a sua carreira foi, e é, uma longa luta face a públicos que sempre desconfiaram um pouco dela. É a sina dos Delfins.

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