Torne-se perito

Ondas de calor estão no topo dos desastres naturais em Portugal

Nos últimos 25 anos, três ondas de calor mataram cerca de 5000 pessoas em Portugal - constituindo os piores desastres naturais do século no país. Sismos, cheias, incêndios florestais, secas e vulcões também estão na lista das principais ameaças naturais a que Portugal está sujeito. O PÚBLICO faz uma síntese das principais ocorrências e do que se aprendeu ou não com elas

Por Ricardo Garcia

Sismos e maremotos

O QUE JÁ ACONTECEUO terramoto de 1755 em Lisboa foi o mais forte que jamais abalou a Europa. A cidade ficou arrasada, tanto pelo sismo em si como por um maremoto que se seguiu e por incêndios que lavraram por vários dias. O número de mortos ascendeu a dezenas de milhar. O continente voltou a ser abalado por um sismo violento em 1909, com 46 mortes no Ribatejo. O terramoto significativo mais recente, com danos materiais importantes, foi o de 1969. Todos os anos há centenas de pequenos abalos no continente, mas só alguns é que são de facto sentidos.
A sismicidade também é muito elevada nos Açores. O terramoto mais destruidor ocorreu em 1 de Janeiro de 1980, com magnitude 7,0 e epicentro no mar, a 35 quilómetros de Angra do Heroísmo. Houve destruição generalizada nas ilhas Terceira e São Jorge, provocando 71 mortos e 15 mil desalojados.
No dia 9 de Julho de 1998, a terra voltou a tremer com força nos Açores, deixando um saldo de oito mortos, 160 feridos e três mil desalojados na ilha do Faial. O período de retorno de um terramoto importante nos Açores é de nove anos.

O QUE SE FEZ (OU NÃO) A SEGUIRApós o terramoto de 1755, Lisboa foi reerguida segundo normas rígidas, que exigiam estruturas trianguladas de madeira, como se fossem gaiolas. Mas a técnica foi progressivamente abandonada no século XIX. Hoje, com todas as alterações entretanto feitas, mesmo as fachadas das construções pombalinas não resistiriam a um sismo como o de 1755, segundo um estudo recente de uma especialista do Instituto Superior Técnico.
Normas anti-sísmicas foram novamente introduzidas na legislação nacional em 1958, mas não há uma fiscalização eficaz da sua aplicação. Mais recentemente, têm sido realizados inúmeros estudos e propostas para reduzir a vulnerabilidade sísmica dos edifícios no país. Uma delas, feita pelo LNEC para a reabilitação dos edifícios antigos, está nas mãos da Câmara de Lisboa desde meados do ano passado.
Na capital, conhecem-se bem quais as zonas mais vulneráveis a terramotos e foi já concluído o plano de emergência sísmica da cidade. O plano, porém, não foi testado até hoje. Além disso, limita-se a Lisboa e, no cenário mais optimista, só dentro de três a quatro anos é que poderá ser alargado aos outros municípios do vale do Tejo.
O plano de emergência de Lisboa é o primeiro a abordar o risco de um maremoto, que no caso de um novo sismo como o de 1755, levaria apenas 40 minutos a atingir a costa.

Cheias e derrocadas

O QUE JÁ ACONTECEUPortugal sofre, ciclicamente, com cheias de dois tipos. As imediatas são causadas por fortes chuvas, concentradas em poucas horas. Foi este o caso das cheias de Novembro de 1967, na região de Lisboa. Os números oficiais dão conta de 462 mortos, em grande parte entre a população pobre, que morava em habitações precárias, em zonas inundáveis. Cheias súbitas como a de 1967 voltaram a matar em 1981 (30 mortos) e 1983 (19). As mais recentes foram as de 1997, no Alentejo, com 11 mortos.
Este tipo de episódios provoca geralmente mais vítimas porque ocorre no espaço de horas, afectando sobretudo quem vive em zonas de risco, perto de ribeiras que atravessam áreas urbanas. "O problema não está nas grandes bacias, mas nas pequenas linhas de água", afirma Rui Rodrigues, director de serviços de Recursos Hídricos do Instituto da Água.
Nas grandes bacias, as cheias resultam mais de longos períodos chuvosos e, em termos de vítimas mortais, o seu impacto é potencialmente menor. Foi assim em 1979, ano da maior cheia de que se tem memória no rio Tejo. Mais recentemente, o Inverno mais problemático foi o de 2000/2001. No baixo Mondego arrebentou diques, inundando os campos e zonas urbanas. O Douro foi palco do drama de Entre-os-Rios, onde a força da água derrubou a ponte ponte Hintze Ribeiro, cujas fundações já estavam precárias, provocando a morte de 56 pessoas.
Associado às chuvas, um aluimento de terras causou 29 mortes, na localidade da Ribeira Quente, nos Açores, em 1997.

O QUE SE FEZ (OU NÃO) A SEGUIRA principal razão para haver hoje danos e mortes nas cheias é a mesma que em 1967: a ocupação humana de zonas com risco de inundação. Neste aspecto, houve muitas medidas legislativas, mas pouca concretização. O conceito de "zona adjacentes" aos cursos de água, onde as construções deveriam ser evitadas ou proibidas, nasceu em 1971 e foi reforçado em 1987. Mas apenas cinco foram legalmente delimitadas.
Em 1998, depois das inundações fatais do ano anterior, o Governo aprovou um novo diploma, obrigando os concelhos atingidos por cheias a elaborarem, em 18 meses, cartas de zonas inundáveis - algo que poucos terão cumprido. O diploma estabeleceu que os pisos de habitação têm de estar a uma altura superior à da maior cheia, permitindo, na prática, que se façam outras construções, como garagens, em áreas de risco.
Outras medidas tiveram mais sucesso. O Projecto de Controlo das Cheias da Região de Lisboa, criado em 1987, tem promovido obras hidráulicas, como pequenas barragens nos troços mais altos das ribeiras, para amortecer os picos de cheias.
Para as bacias hidrográficas, o país dispõe de um sistema de medição dos caudais em tempo real e de modelos de simulação que permitem antecipar as cheias. Pode saber-se, com até um dia de antecedência, se a água vai transbordar no Tejo. No Douro, o tempo é de apenas algumas horas.
A cooperação com Espanha, que divide com Portugal os seus maiores rios, melhorou. Mas em algumas bacias, como a do Douro, não há medições em tempo real dos caudais do lado espanhol.

Secas e desertificação

O QUE JÁ ACONTECEUCerca de um quarto dos meses desde 1901 até 2001 foram marcados por períodos de seca em Lisboa, Évora e Beja, segundo um estudo recente de técnicos do Instituto de Meteorologia. Para o país como um todo, tem havido uma redução consistente da precipitação na Primavera, pelo menos desde 1931. E o número de dias secos consecutivos tem aumentado, sobretudo no Sul, desde os anos 1970 - coincidindo com um aumento sistemático da temperatura média no país. Esta tendência pode agravar-se, caso se confirmem os cenários de aumento da temperatura global nos próximos cem anos.
Secas mais severas ocorreram em 1944, 1945, 1955, 1981 e 1992-95. Agora mesmo, o país está a passar por um período anormalmente sem chuvas. O carácter nefasto das secas no país não se revela em mortes. Mas os prejuízos são enormes, a ponto de Portugal ter tido de pedir, em diferentes ocasiões, auxílio da União Europeia, o que automaticamente classifica as secas como um desastre.
Além disso, as secas contribuem para a desertificação do país, um processo grave no qual o solo se vai degradando progressivamente. Mais de um terço do território continental (36 por cento) é candidato a transformar-se em deserto, no futuro. A própria desertificação também contribui para as secas, pois um solo pobre tem menor capacidade de retenção de água.

O QUE SE FEZ (OU NÃO) A SEGUIREm termos meteorológicos, Portugal é capaz de diagnosticar as secas e até de antecipar quando faltará chuva, embora só a duas semanas. Mas isto é pouco. A última grande seca, em 1992-95, mostrou como o país não estava preparado, tendo sido necessário montar, à pressa, um "gabinete de crise", quando a situação já era dramática.
"Não há nenhum sistema de alerta para a seca em Portugal", afirma Victor Louro, coordenador da aplicação do Programa de Acção Nacional de Combate à Desertificação. Louro defende a criação de mecanismos claros a accionar sempre que for necessário.
Do lado da prevenção, o Governo aprovou, em 2001, o Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água, cujas 87 medidas praticamente não saíram do papel.
A aplicação do programa de combate à desertificação também tem enfrentado dificuldades, como falta de financiamento e de uma estrutura própria de gestão.

Ondas de calor
e de frio

O QUE JÁ ACONTECEUA onda de calor de 2003 terá sido a maior catástrofe natural do país desde o terramoto de 1755. "Em termos de vidas humanas perdidas, é com certeza", afirma o meteorologista Manuel Costa Alves, que na altura altertou publicamente para o desastre que se estava a desenrolar. Ao longo do escaldante Verão houve 1953 mortes a mais do que o que seria de esperar, na esmagadora maioria idosos, com mais de 75 anos, cujas mazelas próprias da idade foram agravadas por temperaturas acima dos 40 graus centígrados durante mais de duas semanas.
O que aconteceu em 2003 não foi caso único de onda de calor com excesso de mortalidade. No Verão de 1981 calcula-se que tenha havido 1900 óbitos a mais; e, em 1991, 1000 óbitos.
Também o frio mata em Portugal. O excesso de mortes no Inverno, em relação ao resto do ano, foi calculado em 28 por cento, segundo um estudo publicado em 2003. Isto coloca Portugal em primeiro lugar entre os países europeus em termos de mortes a mais no Inverno. Mas isto refere-se às estações frias médias. O impacto das vagas de frio ainda está mal estudado.

O QUE SE FEZ (OU NÃO) A SEGUIRAs excessivas mortes causadas pelas ondas de calor de 1981 e 1991 passaram quase despercebidas e só foram notadas anos mais tarde, através de análises estatísticas. "As ondas de calor não estavam na lista de eventos meteorológicos da protecção civil até 1998", afirma Costa Alves.
A primeira resposta só surgiu em 1999, com o desenvolvimento do índice Ícaro. Criado pelo Observatório Nacional de Saúde e pelo Instituto de Meteorologia, o índice permite antecipar se as temperaturas previstas a três dias poderão ou não ter efeitos sobre a mortalidade. É tempo bastante para se tomarem medidas de prevenção. Mas o Verão de 2003 mostrou, de maneira trágica, que não era suficiente. Apesar dos alertas do índice Ícaro, não havia um esquema eficaz para tratar do problema, nem do lado da saúde, nem do lado da protecção civil.
Depois de 2003, o Governo criou um plano de contingência para os Verões seguintes, com diferentes níveis de alerta, a que correspondiam diferentes níveis de resposta do sistema de saúde. A sua eficácia ainda está por demonstrar.

Incêndios florestais

O QUE JÁ ACONTECEUO fogo faz parte da evolução florestal do país. Mas os incêndios estão a beneficiar da ajuda humana, seja pelo abandono da floresta, seja pela plantação de extensas monoculturas - sobretudo de pinhal -, seja simplesmente pelo fogo posto. Para alguns, o termo "desastre natural" pode até não ser apropriado. "Há quem questione isto, sobretudo porque a grande maioria dos fogos são causados pelo homem", afirma José Miguel Carodoso Pereira, investigador do Instituto Superior de Agronomia.
Com altos e baixos, os incêndios florestais em Portugal consumiram, em média, cerca de 90 mil hectares de área verde por ano, entre 1980 e 2002. O Verão de 2003, porém, marcou um ponto fora da curva: com a onda de calor arderam 420 mil hectares de matos e florestas e dezenas de casas foram destruídas.
Mais grave ainda, nesse ano morreram 21 pessoas durante os fogos florestais - cujos principais impactos, normalmente, são apenas económicos. O saldo fatal mais grave foi em 1966, quando 25 soldados perderam a vida enquanto combatiam um incêndio na serra de Sintra.

O QUE SE FEZ (OU NÃO) A SEGUIRAo longo dos anos, os portugueses acostumaram-se a ouvir o Governo anunciar, logo após cada época de fogos, novas medidas para os combater. Mas a dimensão dos incêndios de 2003 revelou que o essencial ainda estava por fazer e que, para se evitar o pior, não basta contratar mais meios aéreos de combate ou reforçar os bombeiros.
As ondas de choque dos fogos desse ano fizeram com que o Governo lançasse, além de um programa de acções imediatas para 2004, um plano para a reforma estrutural do sector florestal, imerso em décadas de imobilismo e confusão. Criaram-se novas instituições ou instrumentos, como a Agência para a Prevenção dos Fogos Florestais e o Fundo Florestal Permanente. Mas tudo isto ainda está no princípio e é vulnerável a alterações no próximo Governo. Do lado do combate, o cenário tem sido ensombrado por sucessivas crises do Serviço Nacional de Bombeiros e de Protecção Civil.
No campo da investigação, tem havido avanços. O mapa de risco de incêndios florestais, feito há 20 anos e actualizado apenas uma vez, em 2000, foi substituído por duas novas cartas, mais modernas e que vão sendo completadas à medida que ocorrem novos fogos. Em 2004, foram já utilizadas para posicionar melhor os meios de combate.
As mortes pelo fogo continuam a ser um aspecto negligenciado pelas autoridades, embora haja investigadores a estudar o tema.

Vulcões

O QUE JÁ ACONTECEUSó os Açores é que estão sujeitos à possibilidade de uma erupção vulcânica. Em todo o arquipélago, há dez vulcões que podem entrar em actividade. Na opinião de Victor Hugo Forjaz, presidente o Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores, o mais perigoso é o do Fogo, na ilha de São Miguel, onde vivem 150 mil pessoas. "Se aquele entrar em erupção, pode causar sérios danos", diz Forjaz.
A erupção mais violenta foi a do vulcão dos Capelinhos, na ilha do Faial, que começou em Setembro de 1957 e só terminou um ano depois. Foi um espectáculo extraordinário, mas com consequências graves. As cinzas expelidas pelo vulcão arruinaram a agricultura e a pesca na ilha e obrigaram parte da sua população a emigrar para os Estados Unidos.
Estatisticamente, os Açores são palco de uma erupção importante a cada 50 anos. A última - a da Serreta - foi submarina e teve início em 1998, ao longo de diversas fracturas que expeliram lava durante quase dois anos, mas sem consequências de maior.

O QUE SE FEZ (OU NÃO) A SEGUIRUm vulcão não é como um sismo, que ocorre sem prévio aviso. Vários sinais, como variações de temperatura no solo e na sismicidade, antecipam uma erupção, conferindo tempo para a prevenção. Nos Açores, apenas existem, porém, planos municipais de protecção civil, provavelmente incapazes de lidar com uma erupção de grandes proporções. Um plano de emergência para toda a região autónoma foi elaborado em 2001. Mas desde então encontra-se retido nas malhas da burocracia, aguardando uma chancela do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil para ser posto em vigor.
A investigação sobre vulcanologia tem-se desenvolvido bastante nos Açores. Mas para Victor Forjaz o acompanhamento deveria ser feito ainda mais de perto. "Cada vulcão deveria ter um cientista responsável", defende.

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