O rosto de Kari

Eu posso acercar-me do filme e tentar descrever as relações que se tecem. Mas sou apenas, é qualquer um de nós, um espectador na sala a sentir a duração de cada plano, o modo como, entre as linhas do diálogo, se pode sentir a vibração cintilante, o espaço de cada rosto. E sobretudo do rosto de Karin.

"Sarabanda" apresenta-se como o primeiro filme de Bergman em 20 anos, retomando 30 anos depois as personagens de "Cenas da Vida Conjugal" - é um enunciado contudo com algumas matizes na minha memória do autor e na apreensão do filme.

No início dos anos 80, Bergman havia regressado à Suécia depois do seu exílio voluntário na sequência de problemas com o fisco. O seu regresso foi uma espécie de "questão nacional" e uma conjugação inédita proporcionou meios consideráveis para a realização do seu anunciado "último filme", "Fanny e Alexandre". A obra foi acolhida com uma generalizada reverência. Na altura pareceu-me que esse factor se tinha mesmo sobreposto a uma vibração particular da obra. Depois vi a versão integral de 5h40, aquela que importa ao autor - e aí sim, "descobri" a obra. Essa versão é a "televisiva" e como tal veio mesmo a ser difundida em Portugal. Entretanto, ele já tinha realizado um telefilme, "Depois do Ensaio" - "o filme depois do último" escrevi então.

Evoco estes factos porque se "Sarabanda" é efectivamente o seu primeiro filme a estrear em sala ao fim de 20 anos, a obra foi concebida como um telefilme, facto que na obra de Bergman não significa qualquer menoridade. Já desde os anos 60 que ele vinha correntemente trabalhando também para a televisão - as "Cenas da Vida Conjugal" têm de resto um estatuto próprio como seis episódios de 30 minutos. E do mesmo modo, Bergman não parou depois do tal "último filme". Continuou a encenar; fez alguns teledramáticos; e, além de escrever a sua autobiografia, "Lanterna Mágica", fez obras "autobiográficas", como a curta-metragem sobre foto da mãe "O Rosto de Karin" ou a escrita da história familiar, com os argumentos de "As Melhores Intenções" realizado por Billie August, ou de "Os Filhos de Domingo", realizado pelo seu filho Daniel Bergman. No primeiro, a história dos pais, antes mesmo do seu nascimento, atribui à mãe o nome de Anna; no segundo manteve o de Karin.

No prólogo de "Sarabanda", Marianne/Liv Ulmann dirige-se-nos, "olhos nos olhos", com as fotografias à sua frente, e anuncia o projecto de visitar Johan. No capítulo Um temos assim de novo o casal das "Cenas". Só que no exercício de revisitação se vêm desenhar linhas de fugas. Se Um é Marianne e Johan, Dois é Marianne e Karin, a neta de Johan, Três é Karin e Hendrik, o seu pai, Quatro é Johan e Hendrik, pai e filho, Cinco é Marianne e Hendrik, Seis enfim é Johan e Karin. E escrevo "enfim", porque depois do magnificente plano final de Seis, com o rosto de Karin/Julia Dufevnius a tanto evocar alguns planos do de Elizabeth/Liv Ulmann em "Persona", os quatro restantes capítulos e o epílogo são uma agitada e rápida "stretta" desta "sarabanda" - não sem que nestas linhas de fuga incessantes fiquemos sem conhecer ainda Martha, a filha de Marianne e Johan que está num hospital psiquiátrico.

Esta estrutura é indiferente às estandardizações vigentes, cinematográficas também, mas por maioria de razões televisivas - ou soberanamente diferente. Encetamos um percurso de descoberta das personagens e dos sucessivos face a face, das danças entre eles - e a sarabanda era uma dança.

É então um "pas de quatre"? Já disse que há também Martha. Mas sobretudo há uma outra personagem, ausente e todavia tão presente enquanto rosto e memória - Anna, a falecida mulher de Hendrik, a mãe de Karin.

Vejo esta Karin, e ocorre-me a Karin que era Birgitta Petterson em "A Fonte da Virgem", e outras mais. E vejo o retrato de Anna e irresistivelmente evoco "O Rosto de Karin", a foto da mãe. Fios é certo, mas não apenas memórias.

"Bergman" será também um significante de reflexão metafísica - nunca me tocou por aí. Como será de modernidade - e esse marcou-me indelevelmente. Mas há nele uma constante, que se prende com o teatro e o amor dos actores, e que se manifesta também na permanência da relação com os rostos.

E eis então que retorno à minha mais antiga memória de Bergman, a um texto em que escrevia: "Muitas pessoas de teatro esquecem que o nosso trabalho no cinema começa com o rosto humano. Podemos com certeza deixar-nos absorver completamente pela estética da montagem, podemos reunir objectos e seres inanimados num ritmo fascinante, podemos fazer composições do real duma beleza indestrutível, mas a possibilidade de nos acercarmos dum rosto humano é sem dúvida a originalidade primeira e qualidade distintiva do cinema".

Eu posso acercar-me do filme e tentar descrever a sua estrutura narrativa, as relações que se tecem. Mas sou apenas, é qualquer um de nós, um espectador na sala a sentir a duração de cada plano, o modo como, entre as linhas do diálogo, se pode sentir a vibração cintilante, o espaço de cada rosto. E sobretudo do rosto de Karin.

Marianne é aquela que nos conduz, mas a hipótese de prossecução de "Cenas da Vida Conjugal" é fugidia. "Sarabanda" é uma dança sobretudo entre Bergman ou Johan e a jovem que recebe e pode prosseguir a possibilidade da arte, Karin, a violoncelista que escolherá a sua própria via autónoma.

A fixidez das fotografias é tanto mais especular no movimento cinematográfico. Mas o rosto fotografado de Anna, como Johan o contempla, encerra-lhe um enigma: "Não se compreende o facto do Henrik ter tido o privilégio de amar a Anna".

Bergman interrogara já "O Rosto de Karin". Que privilégio de amor encerra um rosto? Que possibilidade da arte encerra o rosto de Karin magnificado por Bergman?

"Sarabanda" é um filme que vem interrogar fundo a nossa capacidade de continuarmos a sentir o cinema, olhos nos olhos.

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