Calafetado

Há filmes que são insidiosos. O que acontece vem de lado, numa luz oblíqua, num olhar enviesado, e o que nós vemos desloca-se numa certa banalidade. Se considerarmos "La Niña Santa", da realizadora argentina Lucrécia Martel (de quem vimos um impressionante filme gelatinoso, "O Pântano"), encontramos um tema conhecido, e que pode ser apenas um estereótipo psicológico: a oposição entre a religiosidade e a sexualidade. A religião estabelece uma carapaça de códigos e uma pauta de comportamentos que têm todas as marcas da hipocrisia. Se o ambiente for o de um colégio, com severas disciplinas e cânticos de uma espiritualidade rançosa, então temos o ambiente perfeito para que esta hipocrisia se alargue e prolifere.

Do lado oposto, a sexualidade. Vem pé ante pé, clandestina, calafetada. Mas irrompe em sintomas que manifestam uma situação de censura e repressão. A sexualidade não se assume, não escolhe a luz do sol, não celebra o corpo. Escorrega pelo lado mais viscoso, por vezes maliciosamente adolescente, por vezes quase insuportavelmente obscena.

No quadrilátero formado por duas amigas muito jovens, pela dona do hotel e pelo médico consagrado, estão todos os elementos que permitem que o dispositivo funcione. As amigas são Amália (de uma notável beleza) e Josefina. Fazem da piscina um lugar de ardores e vapores em que os corpos se revelam. A proprietária deste hotel envelhecido, onde nada funciona correctamente, onde tudo são ruínas, é Helena, uma mulher fascinante, vivendo na obsessão do ex-marido, e duma sensualidade fatigada e envolvente, feita de gestos e sinais que explodem em todas as direcções. Jano, o médico, esse ser de duas caras, oscila entre a respeitabilidade profissional (estamos num congresso de médicos) e familiar (a mulher com quem fala ao telefone, e a quem pergunta regularmente pelos filhos) e a sua asquerosa vocação pedófila. E é na separação entre os dois planos e nos equívocos que a dada altura vão eclodir que encontramos a dramaticidade discreta e murmurada em que o filme se move.

Isto é o filme explícito de Lucrécia Martel - essa cineasta argentina que constitui nos últimos tempos uma revelação dos festivais de cinema. Mas há algo mais. Uma construção romanesca extremamente hábil, em que as situações se trocam e destrocam através de um uso muito interessante das personagens secundárias. Ou a capacidade de criar um clima em que sentimos uma espécie de calor generalizado, com os corpos a suarem de desejo ou de ambiguidade. Ou ainda uma forma de clausura que introduz insidiosamente uma atmosfera incestuosa (o irmão que se deita com a irmã e a sobrinha, etc.). Sentimos com "La Niña Santa" a extraordinária capacidade de construir um espaço, uma meteorologia, uma rede de relações, uma pulsão secreta. Isto é, de fazer cinema - um cinema que parte da literatura e a ela regressa.

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