A última dança

Em certa medida Bergman não mentiu quando, em 1982, depois de "Fanny e Alexandre", anunciou a sua despedida do cinema. Era ainda um homem novo, tinha 64 anos, e queria dedicar-se ao teatro, primeira paixão. Se voltou a fazer filmes foi para a televisão, entre obras originais e peças de teatro filmado, que não tiveram divulgação em sala ou a tiveram muito restrita. Como "Saraband", cuja exibição em sala de cinema está dependente de condições impostas por Bergman (uma sala capaz de projectar vídeo digital de alta definição, formato original da obra). Mas pouco importa discutir a tecnologia ou o "medium" - o cinema não é um "suporte" nem um enfeite, é um legado, e Bergman até com marionetas faria cinema (aliás, já fez). Portanto, em certa medida, Bergman mentiu: ei-lo mais Bergman do que nunca, depurado (foi preciso escavacar muita pedra para chegar aqui), despojado, nu, cru, essencial. O fim da mascarada.

A propósito de nudez, despojamento, não nos sai da cabeça o mais espantoso campo/contracampo que veremos em 2005. É quando Erland Josephson (na personagem de que se pode dizer ser o "alter ego" de Bergman, mais uma vez), durante uma noite de ansiedade e suores frios, bate à porta do quarto de Liv Ullmann (na personagem de que se pode dizer, mais uma vez, ser o "alter ego" de... Ullmann, tal qual Bergman o projecta) e lhe pede que o deixe dormir com ela. Parece uma noite de tempestade, mesmo que não seja. Ela condescende e ele, um velho meio inclinado e de mão sempre aos tremeliques, despe-se de frente para a câmara; pede-lhe a ela que se dispa e ela fá-lo num plano (o contracampo) em contra-luz que lhe obscurece o corpo e o rosto. Depois podem deitar-se e dormir.

É isto, e mais nada, deixou de haver coisas a atravancar, os corpos estão irreconhecíveis ou invisíveis, o desejo já não é uma questão - trinta e tal anos depois de um padre ter dito a Johan (Josephson) que um casamento precisava de amizade e de "um erotismo inabalável" ("nós éramos bons amigos", comenta ele com Marianne, a personagem de Liv), os dois ex-cônjuges podem voltar a dormir na mesma cama. Se "Saraband" retoma as "Cenas da Vida Conjugal" (obra também para televisão, de 1973, de onde estas duas personagens foram recuperadas) esta cena e estes dois planos são, numa mistura de consolo e pessimismo, a derradeira pedra que Bergman põe no assunto.

A recuperação destas personagens e a citação de "Cenas...", sendo, claro, muito mais do que um "gadget" narrativo, não são o único eixo de "Saraband", e nem sequer são a única remissão directa para o cinema de Bergman (o filme não terminará sem um plano que nos lembra terrivelmente "Persona"). Num certo sentido, Johan e Marianne (ela, sobretudo) não são mais do que espectadores, já não têm muito a esperar. O verdadeiro drama ocorre perto deles, é a história do filho viúvo de Johan (Henrik, interpretado por Borje Ahlstedt) e da filha dele (Karin, uma rapariga de 19 anos, interpretada por Julia Dufvenius). Explicar a história toda seria inútil - contentemo-nos em saber que através dela surgem os mais violentos temas do universo bergmaniano e, neste caso, a suas mais violentas expressões. O que apetece mesmo é continuar a descrever cenas. Como a que sugere (o beijo) o carácter incestuoso do amor de Henrik pela filha, cúmulo de uma dependência psicológica que ele vive no extremo de tudo ("se me deixares, ficarei pobre, ou uma palavra melhor que não existe") e ela numa espécie de ricochete permanente com tudo e com todos. A visita do filho ao pai, no único confronto entre dois homens ao longo de todo o filme, cena de gelar o sangue e onde se diria que Bergman se consagra como "metteur-en-scène" minimalista de olhares e movimentos de músculos faciais, num momento em que o ódio e uma distância irremediável ganham a espessura invisível do ar ("sempre achei que o ódio genuíno devia ser respeitado, e foi o que me limitei a fazer"). E depois o telefonema do hospital a avisar que Henrik se tentou suicidar, os "Jesus, Jesus" de Johan até que, recomposto do choque, atira "foi sempre um falhado, nem de se matar é capaz", depois o filme ter sido rasgado por "paralíticos" do corpo nu e ensanguentado de Henrik.

Em fundo, a omnipresença da morte, ou melhor, de uma morta, Anna, mãe de Karin, "protagonista ausente" cujos retratos assombram toda a gente e todos os lugares. Recordação de um amor - e de um amor de todos, marido, filha, sogro - transformado em maldição: vêm-na como imagem de vida mas não percebem que é apenas a imagem que lhes suga a vida. Menos Karin, em quem todos projectam Anna; Karin dá-lhes a ilusão da regeneração - o confronto fundamental do filme, a luta pela conquista de Karin entre Johan e Henrik (com o episódio esclarecedor da compra do violoncelo), é uma luta pela sobrevivência. A luta dela também: submeter-se, deixar-se fixar, é deixar-se apanhar pela morte. Por isso, é tão esquiva.

Marianne, a espectadora (começa e acaba o filme pondo em ordem a sua colecção de fotografias), pergunta-se no fim se "não terá sido um erro" ir visitar Johan. Mas pode acabar o filme com um sorriso.

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