Azulejos azuis na Praça da Figueira dividem especialistas

O revestimento total das fachadas custará entre 350 e 400 mil euros. A autarquia não explica quando passará da tentativa de embelezamento exterior às obras de fundo. O Instituto do Património Arquitectónico vai pedir ao seu conselho consultivo que se pronuncie sobre o projecto, da autoria de Daciano Costa

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A ideia consiste em colocar azulejos azuis e brancos mais escuros nos andares de baixo e mais claros nos pisos de cima, de modo a criar um efeito degradée Imagem cedida pelo atelier de Daciano da Costa

A Câmara de Lisboa diz que os cem mil azulejos produzidos em 2001 para decorar as fachadas da Praça da Figueira, armazenados desde essa altura num armazém em Alcântara, afinal não servem para esse fim.

A autarquia, através de um porta-voz do seu presidente, afirma basear-se num parecer pedido já este ano ao especialista em estruturas e em reabilitação de edifícios João Appleton pelo atelier do autor do projecto, o arquitecto Daciano da Costa. Só que o engenheiro Appleton garante que nem sabia da existência dos cem mil azulejos azuis e brancos, tendo-se apenas pronunciado sobre as características técnicas ideais deste tipo de revestimento aplicado às referidas fachadas.

Numa altura em que a câmara retoma o projecto dos azulejos são vários os indícios de que os procedimentos pouco claros que na época rodearam o processo estão de regresso. Quer porque a técnica camarária agora encarregue de tratar do assunto no gabinete do presidente da câmara, a arquitecta Inês Cotinelli, é filha do próprio autor do projecto, quer porque ninguém no município sabe explicar qual será a articulação entre esta operação de cosmética, orçada em 350 a 400 mil euros, e duas outras vertentes da maior importância para esta zona da cidade: a reabilitação dos edifícios, nomeadamente ao nível dos telhados - a efectuar através de uma sociedade de reabilitação urbana -, e a candidatura da Baixa a património mundial. Ao responsável pela candidatura não foi, aliás, pedida opinião.

"Se tratassem dos edifícios em vez de os embelezar!", critica um inquilino de um quinto andar da Praça da Figueira, que diz que a filha mal cabe em pé no quarto desde que o telhado começou a inclinar. Um proprietário adepto do revestimento a azulejo vê nele apenas um senão: "É uma solução permanente".

"Concordo com tudo o que venha alindar a praça. Isto aqui tornou-se uma desgraça: os velhos bêbados juntam-se numa tasca e há prostituição na rua", observa o proprietário de uma loja de "lingerie" instalada na praça.

A aplicação de azulejos inadequados às velhas fachadas pode ter consequências graves, desde a sua queda em cima dos transeuntes ao apodrecimento das paredes. Acontece que os responsáveis da fábrica que produziu os cem mil azulejos, a Recer, garantem que o seu fabrico seguiu todas as especificações técnicas que lhe foram fornecidas quer pela câmara quer pelo "atelier" de Daciano da Costa. Por isso não percebem como é a autarquia vem agora dizer que o revestimento não presta para aquele fim.

"Longe de mim fazer um parecer para deitar fora cem mil azulejos", espanta-se João Appleton. O engenheiro explica que é fundamental que as frágeis paredes da Praça da Figueira continuem a poder "respirar" depois da aplicação do revestimento cerâmico. Ou seja, as trocas de humidade entre elas e o exterior tem de continuar a fazer-se, e isso implica usar azulejos de produção semi-industrial, cujas juntas irregulares são mais adequadas a esse fim. A espessura da base dos azulejos, a chamada chacota, é outra característica importante: "Tem de ser uma chacota grossa, que absorve melhor a humidade" e adere melhor às fachadas, que terão de ser picadas. Em vez de impermeáveis, os azulejos deverão ser porosos, à semelhança dos que se faziam para fins decorativos entre o séc. XVIII e os finais do séc. XIX.

A Recer, que se dedica habitualmente ao fabrico de azulejos industriais, cobrou apenas 40 cêntimos por azulejo, mas mesmo assim continua até hoje à espera que o município lhe pague os 43 mil euros em dívida. "São azulejos de espessura grossa", assegura um porta-voz da empresa. "Aquilo deu-nos um trabalho imenso, e tínhamos prazos de produção apertados. Fizemos vários ensaios até chegarmos a um produto final. Isso de a câmara dizer agora que não prestam parece uma desculpa de mau pagador".

Um colaborador de Daciano da Costa, João Paulo Martins, diz terem sido os serviços camarários, e não o atelier, a fornecer as especificações técnicas à Recer. "A aplicação de azulejos novos em fachadas antigas é uma área de estudo experimental", justifica. "Há três anos não estávamos na posse de todos os dados que temos hoje".

Inês Cotinelli tem estado em conversações com a fábrica de azulejos Viúva Lamego para a produção dos novos azulejos necessários ao revestimento de toda a praça, já que entende tratar-se de uma das poucas senão mesmo a única empresa com capacidade para satisfazer as exigências contidas no parecer de João Appleton. Será uma quantidade de azulejos muito superior à produzida há três anos, pois os cem mil quadradinhos correspondiam a parte de uma primeira fase do projecto. Mas para os azulejos azuis e brancos começarem a ser pintados à mão, com trincha, nesta ou noutra fábrica, é preciso o acordo não só dos proprietários dos edifícios, nuns casos empresas e noutros particulares, como também do Instituto Português do Património Arquitectónico (Ippar). Os donos dos prédios não parecem, na sua maioria, desagradados com a ideia, até por ser a autarquia a suportar os custos. Além disso, este revestimento exige menos manutenção do que a pintura. Quanto ao Ippar, o melindre da questão levou os seus responsáveis a pedir um parecer ao conselho consultivo do instituto.

Ninguém arrisca uma explicação para a aplicação dos azulejos ter sido posta de lado há três anos, apesar de fazer parte de um projecto de requalificação da praça concretizado nas suas restantes vertentes. Foi o então número dois da câmara, o comunista Rui Godinho, quem convidou Daciano da Costa. Com a sua saída da autarquia a questão transitou para o presidente do município, João Soares, que entretanto ficou a braços com a contestação ao elevador para o Castelo de S. Jorge. O ascensor sairia precisamente das traseiras da Praça da Figueira. O aproximar das eleições autárquicas e a demora em obter o acordo de todos os proprietários dos edifícios poderão ajudar a explicar a desistência.

O assunto deverá agora ser discutido em reunião de câmara no início do ano.

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