Crise académica de 69 na origem do 25 de Abril

Aparentemente distintas, a Crise Académica de 1969 e a revolução do 25 de Abril de 1974 têm uma ligação íntima, mas pouco visível, através dos actores estudantes da primeira, que ajudam a instruir os militares protagonistas da segunda. Esta tese é expressa numa obra sobre as repúblicas de estudantes de Coimbra, centrada no período das lutas académicas dos anos 60, elaborada pela docente Teresa Carreiro. É a primeira investigação académica de fôlego sobre aquelas típicas comunidades coimbrãs.Apanhados no turbilhão da crise académica que espoletou em Coimbra a 17 de Abril de 1969, dezenas de estudantes, muitos dos quais estavam prestes a completar as licenciaturas, são mobilizados à pressa, como medida punitiva do regime, para a guerra colonial. A decisão pode ter sido um erro estratégico do Estado Novo, questiona a investigadora. Mas, na opinião de um dos protagonistas, o psiquiatra Pio de Abreu, desse modo os quartéis receberam "um núcleo de quadros particularmente dotados para a luta da resistência e para as tarefas que exigissem audácia, persistência e coragem política".É assim que nos anos seguintes são "milhares de estudantes" que, "saídos da crise com a determinação comprometida de mudança, vão engrossando as fileiras do exército e da contestação à guerra", recorda. Pio de Abreu, à altura residente na República Palácio da Loucura, e um dos entrevistados por Teresa Carreiro, é peremptório ao afirmar que "o 25 de Abril teve muito da Crise Académica de 69".Já então a imaginação e as estratégias festivas que os estudantes puseram em prática para elucidar a população das razões da sua luta - como a "operação flor" e a "operação balão" - lançaram "as sementes que terão dado os cravos de Abril, cinco anos depois". E todos aqueles jovens que, passada a convulsão da luta académica, optaram por permanecer em Portugal, e não se exilaram, foram contribuindo para que o império colonial conhecesse um cenário de "flores no cano das espingardas e canções de solidariedade na boca dos militares", a 25 de Abril de 1974.O exemplo da "Loucura"Partindo de um estudo de caso da República Palácio da Loucura, Teresa Carreiro reconstitui o quotidiano turbulento da década de 60 e dos seus actores, no contexto da cidade, universidade e das suas interacções com o país e as mudanças políticas internacionais. Nessa época, o Estado Novo revia-se ainda na universidade corporativa, em especial na de Coimbra, "louvada como "baluarte dos valores eternos".O processo de politização do Palácio da Loucura, à semelhança do acontecido noutras repúblicas, aumenta com o avanço dos anos 60, refere a investigadora, frisando que à campanha para as eleições em que participou Humberto Delgado, dois anos antes, se fica a dever a "configuração da cultura política e do cimento ideológico" dos repúblicos. "Foi para mim, como para a geração de 60, o percutor que disparou dentro de todos nós", nas palavras do historiador, já falecido, César de Oliveira, à altura residente na República Prá-Kys-Tão.Na sequência do "fenómeno Delgado" - acrescenta - assiste-se a uma substituição gradativa da antiga geração de estudantes de esquerda, carente de prestígio e de representatividade no seio da academia, por uma "nova vanguarda", constituída na sua maior parte por académicos que estudam e passam de ano, numa ruptura com a tradição boémia. "E será este o momento em que as repúblicas de estudantes, porta-vozes dessa 'nova vanguarda', vão, pelo menos parcialmente, fazer o corte com as até então evidenciadas preocupações praxísticas", observa.O Conselho das Repúblicas (CR) passa a encabeçar a mudança à esquerda dos destinos da Associação Académica de Coimbra (AAC), tradicionalmente confiada "às direitas", mudança de mãos que não deixa indiferentes os governantes da época. Em 1959-60, o Conselho apresenta a primeira das suas listas, onde figuravam, entre outros, os então estudantes Fernando Assis Pacheco e Manuel Alegre, que acaba por sair derrotada. No ano seguinte, escolhendo para liderar um estudante do exterior dos círculos mais conotados com a contestação, Carlos Candal, a lista do CR acaba por triunfar, e assiste-se, a partir daí, a um deslocamento das preocupações corporativas para uma intervenção mais social e cultural da academia.Gozando do prestígio conseguido pela visibilidade das posições assumidas, e das sucessivas vitórias para a AAC, até 1965, altura em que é nomeada uma comissão administrativa pelo regime, o CR ascende a um patamar de destaque como pólo activo de resistência. Em 1968, as repúblicas assumem a liderança da reivindicação de eleições para a AAC, o que vem a acontecer no ano seguinte, coroada com uma nova vitória de uma lista por si patrocinada, encabeçada por Alberto Martins.Os anos 60 em Coimbra ficam marcados por duas crises académicas e uma "inventona", de 1965 - uma acção "frágil e desligada das massas estudantis", gerida por uma direcção da AAC tomada pelo PCP - segundo a investigadora. Para Celso Cruzeiro, também repúblico da Palácio da Loucura, "a crise de 62 plantou a árvore, e a de 69 apanhou os frutos". *Agência Lusa

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