"O Físico Prodigioso" ou a força do amor

Há mitos universais que se misturam com assuntos de cariz popular, imagens de uma sensualidade despudorada que se confrontam com fanatismo religioso, líquidos brancos e vermelhos que escorrem pelas paredes, cânticos entoados no instante (quase angélicos) que não ambicionam apagar interferências demoníacas. Várias faces de "O Físico Prodigioso", de Jorge de Sena, que esta noite é estreado no Teatro Carlos Alberto (TeCA), no Porto, numa co-produção do Teatro Pé de Vento e do Teatro Nacional São João (TNSJ). A recriação teatral deste texto narrativo é "um desafio arriscado", escreve Maria João Reynaud, responsável pela dramaturgia, no programa do espectáculo. As fronteiras do texto não são nada claras. Jorge de Sena considerava-o "a mais fantástica" das suas "criações totalmente imaginadas", enfiava-o na gaveta do "experimentalismo formal" e via nele uma prova irrefutável de liberdade. João Luiz, responsável pela versão cénica e pela encenação, não trai as características da obra. Resolveu "servir o texto" e "não servir-se dele". Dar vida a "O Físico Prodigioso" era uma velha pretensão de João Luiz. Um "sonho" acalentado desde que o Pé de Vento apresentou um espectáculo criado a partir desta novela - em Bruxelas, no contexto de uma homenagem a Jorge de Sena, em 1993. Faltou sempre orçamento à companhia - problema agora ultrapassado com a parceria com o TNSJ. Uma novela de moldura medieval"O Físico Prodigioso" - baseada em duas passagens de "O Orto do Esposo", um livro moralístico-religioso da literatura portuguesa do século XV - enquadra-se no género fantástico. Gira em torno de um físico (um médico-feiticeiro, no sentido medieval do termo) protegido pelo diabo, mas o que mais parece entusiasmar o encenador é a "dama com grande sentimento de culpa".A novela tem uma moldura medieval. O puritanismo da época "dava a entender a cada indivíduo que o espaço privilegiado do confronto entre o Bem e o Mal era o seu próprio corpo"; o sexo feminino era "considerado vulnerável e facilmente instrumentalizável pelo Malígno"; impunha-se a figura da "mulher frígida, punição da criação, a quem só seria reconhecia alma em 1828", recorda João Luiz.D. Urraca (Ana Vargas) deseja o pai, casa com um homem mais velho por imposição paterna, enviuva, refugia-se num castelo. É nesse castelo (onde só podem morar mulheres - os homens não passam de objectos sexuais passageiros) que conhece o jovem físico (Daniel Pinto) e encontra o amor. O físico - belo e virgem - é detentor de diversos poderes, que lhe foram concedidos pelo diabo (Rui Spranger), que por ele nutre uma paixão não correspondida. Tudo se complica quando a Inquisição entra no castelo, prende os habitantes e inicia um pesado processo de heresia. Conseguirá o amor triunfar sobre o fanatismo?"Houve sempre gente à procura do amor, e houve sempre gente à procura do poder", sublinha o encenador. E o "pacto com o diabo é isso mesmo", diz, lembrando que o diabo é uma "invenção do final do século XIV, início do século XV"."O Físico Prodigioso", que assinala os 25 anos da morte de Jorge de Sena, lança uma reflexão múltipla. O contexto actual, como o da peça, é de fanatismo religioso e de luta pelo poder. O encenador julga que estamos a caminhar "alegremente para o caos". Mas a existência de caos, adverte, "é natural: é uma consequência do desvio das regras. O caos mora na renovação de valores, na mudança de paradigmas sociais". "O Físico Prodigioso"de Jorge de Sena Co-produção Teatro Pé de Vento/Teatro Nacional São JoãoPORTO Teatro Carlos Alberto. Tel.: 223393034. Até 24 de Outubro: 3ª, às 15h; 4ª e 5ª, às 15h e 21h30; 6ª e sáb., às 21h30; dom., às 16h.Bilhetes a 10 e 15 euros.

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