O niilista pronto-a-vestir

Circulam coisas pomposas em relação a este filme: "o cinema do futuro e da modernidade" (escreveu-se em relação ao filme) ou "samurai niilista em viagem pela noite" (em relação ao actor, que é uma estrela poderosa que aqui, supostamente, arrisca fazer de "mau" - como se isso justificasse um troféu). Num caso, a adjectivação está mesmo a insuflar e cria uma sensação de vazio - mas calha bem a um filme (na verdade, ao cinema de Michael Mann) que carrega cada plano, cada diálogo e cada personagem com um comentário, como se quisesse dizer o que significam esse plano, esse diálogo e essa personagem, e aí é só escolher: niilismo, solidão nas cidades, via sacra da existência...

No outro, há um problema de memória, e convém lembrar: se a questão é ser o "mau da fita", em "Entrevista com o Vampiro" ou "Magnólia", por exemplo, Cruise deu mais folga às amarras de segurança; o "look" que apresenta em "Colateral" até é demasiado auto-consciente.

É uma questão de pronto-a-vestir, na verdade: cabelo grisalho, ameaço de barba, tom metálico nas roupas e nas armas; o gosto pelo jazz a afinar o "cool". Vincent, é assim que a personagem se chama em "Colateral", trata da sua profissão como de um objecto de arte, de forma meticulosa: é assassino, apanha um táxi em Los Angeles para ir distribuir a morte a várias casas. Os óculos escuros completam a máscara.

"Colateral" é em grande parte filmado em vídeo digital de alta definição, explicou o realizador, Michael Mann, porque só a sensibilidade desse suporte era capaz de captar as cores da escuridão e o fenómeno "lívido", como ele disse, que é o misto de neblina e luar quando a noite desce sobre Los Angeles. É a aposta mais motivadora - errar por Los Angeles de táxi ao crepúsculo, num "no man's land" deixado aos coiotes. A poesia mórbida motivou Mann. Mas por que o "thriller" não arranca da fórmula (mesmo dando-se ares existencialistas) ou tem medo de arrancar da fórmula (este filme é muito menos arriscado do que o pintam), não é difícil, apesar de o realizador ter descoberto mil e uma maneiras de filmar o táxi, dentro do táxi ou a partir do táxi, darmos por nós a ver um clip de "malaise".

Regressando ao "thriller": Cruise/Vincent apanha um táxi, que é conduzido por Jamie Fox/Max, para ir cumprir uma encomenda de cinco assassinatos. Um, que já não acredita em nada e mergulha em frente, escolhe o outro, aquele que se resguarda a preparar a sua vida (arriscando que ela lhe fuja). O que segue é o desenvolvimento da relação entre um kamikaze e um sonhador. Na verdade, "Colateral" não sustenta esse "pas-de-deux". Os diálogos não ajudam, há buracos no argumento, interferências de personagens (detectives, polícias...) que só estão ali para impedir devaneios de abstracção. Cruise (Jamie Fox é mais interessante do que ele) está muito consciente da tinta para o cabelo ou do guarda-roupa - e soa tanto a falso quando desfila conhecimentos de jazz!. Quem quiser chamá-lo "samurai niilista" deve ver Alain Delon em "O Samurai", de Jean-Pierre Melville - independentemente de qualquer motivação, deve-se ver "O Samurai", de Melville.

Há acção e sim, "Colateral" é de uma eficácia ganhadora se nos contentarmos com revisitações à obra do Hitchcock de "Janela Indiscreta" já revisto por Brian de Palma, algo de "Miami Vice" (a série de TV onde Mann se destacou) e até dos "ballets" de balas de John Woo com uma costela "Terminator" em virtude do metálico Cruise.

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