O quotidiano de um herói

"A Sombra do Samurai" é, aparentemente, território bem diferente. Filme de época, marcado pelos códigos do "filme de samurai", mas códigos esses que Yamada se propôs retrabalhar - ele terá dito que "A Sombra do Samurai" era um "filme de samurais", sim, mas que se propunha ser, também, "realista". Esse aspecto é provavelmente aquilo que o filme tem de mais interessante, não apenas por uma questão de "décors" e de reconstituição histórica (neste caso, o Japão da segunda metade do século XIX, nos últimos anos do sistema feudal clássico), mas pela relação com o próprio peso do quotidiano e das suas vicissitudes práticas. Senão vejamos: o herói, o samurai a quem os outros chamam "Sombra" ou "Crepúsculo" (conforme a tradução que se prefira), é um viúvo que depois da morte da mulher deixou de levar uma "vida de samurai" para cuidar das filhas e da mãe senil, vivendo como agricultor e artesão. A dada altura há até uma espécie de "gag", muito discreto e muito sussurrado (como quase tudo neste filme), com um episódio em que o mau cheiro exalado pelo protagonista teria deixado o seu clã na iminência da desonra - o que é um bom exemplo do tipo de interferências que caracteriza o "realismo" do filme de Yamada: pequenas coisas, muito palpáveis, que se interpoêm no caminho da saga e da lógica do filme de acção.

Por outro lado, se o filme não pode deixar de ser visto como uma perspectiva sobre o ruir da organização sócio-política do Japão tradicional - donde, também, o "crepúsculo" - o confronto entre os valores que regem essa organização e as premências do quotidiano são um dado importante. Entre os códigos de honra e de lealdade e as motivações puramente individuais, é como se Yamada filmasse o assumir destas últimas como aquilo que veio pôr fim ao Japão feudalizado. Toda a codificação social aparece aqui de maneira bastante abstracta, como uma coisa longínqua que pouco sentido faz na vida prática da personagem principal, e de certa maneira o grande confronto aqui é entre o indivíduo e o clã, e a luta é pelo direito a ser um indivíduo para além (ou para aquém) do clã. No fundo, se o "Sombra" aceita, por uma última vez (e na sequência de acontecimentos profundamente pessoais, como o reaparecimento da mulher que foi a sua paixão da juventude), ser um samurai "activo", é para poder conquistar definitivamente o direito a deixar de o ser.

Há aqui um toque "revisionista", claro, que não deixa de ter alguns paralelos com a revisão do "western" por Clint Eastwood ou, mais genericamente, com a sua revisão da figura do herói tradicional (lembre-se um filme como "Um Crime Real", por exemplo). É outro dos aspectos interessantes de um filme rigoroso e disciplinado, que Yamada dirige com mão segura mesmo que demasiado "certinha" - naquele ponto em que a palavra "academismo" começa a assomar.

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