Proibição do barco da Women On Waves: organizações vão apresentar queixa contra Portugal

Foto
Esta é a terceira deslocação do barco-clínica a países onde o aborto não é legal DR

A Women On Waves e as organizações que convidaram a associação holandesa pró-legalização do aborto para se deslocar a Portugal com a sua embarcação transformada em clínica ginecológica vão avançar com uma queixa nas instâncias internacionais contra a decisão do Estado português de impedir a entrada do navio em águas nacionais.

"Definitivamente vamos avançar com uma acção contra o Estado português", afirmou a holandesa Rebecca Gomperts, fundadora da Women On Waves.

As organizações estão, no entanto, "ainda a estudar", junto com uma equipa de advogados, "todos os aspectos legais" relacionados com a notificação que receberam hoje do Ministério da Defesa e do Mar, a qual contestam.

"O Governo português está a violar o Direito internacional. Viemos para respeitar a lei portuguesa mas somos tratados como terroristas que ameaçam a segurança do país", denunciou Rebecca Gomperts, em conferência de imprensa. "O barco não tem armas a bordo. Têm medo de quê?", questionou a activista, considerando a decisão "inacreditável".

Por seu lado, Ana Cristina Santos, da Não te Prives, uma das associações portuguesas que promoveu a presença do barco da Women On Waves em Portugal, considerou "débeis e pouco sustentados" os argumentos do Governo para rejeitar a entrada do barco em águas nacionais. "É ridículo" argumentar que a vinda do barco constitui um perigo para a saúde pública, pois "o verdadeiro perigo para a saúde pública é o aborto clandestino". Acreditando que "os portugueses não são ingénuos", Ana Cristina Santos não duvida que a medida resultou de uma "decisão política".

O advogado que representa a organização holandesa considera que a proibição do Executivo português não tem fundamento jurídico. Segundo Daniel Andrade, ouvido pela SIC, os argumentos apresentados pelo Governo não são verdadeiros. Entre eles está a acusação de que a Women On Waves iria distribuir produtos ilegais em Portugal, o que, salienta o advogado, "é rigorosamente mentira".

Já o advogado António Marinho tinha criticado a decisão do Governo de proibir a entrada do barco em águas portuguesas, considerando-a uma "prepotência à maneira do doutor Salazar". Em declarações à Lusa, o jurista de Coimbra e candidato a bastonário da Ordem dos Advogados considera que o Executivo não pode ultrapassar a legislação comunitária, pelo que a organização holandesa tem "todas as condições para contestar a medida". "Isto é um acto de força. Quando não se tem a força do Direito, tem-se o direito da força", lamentou António Marinho. "Sobre a vontade política dos governantes deve prevalecer o Direito e, neste caso, o direito comunitário", pelo que a decisão governamental "viola a lei" e "serve apenas para cobrir Portugal, o Governo e os portugueses de ridículo", defendeu, lembrando que "nem a Irlanda nem a Polónia impediram a entrada do barco".

Se tudo correr como previsto, o barco deverá chegar na madrugada de domingo (já se encontra em linha com a cidade do Porto), mas permanecerá ao largo, em águas internacionais. Apesar disto, a Women On Waves mantém a decisão de atracar no porto da Figueira da Foz, para o qual pediu ontem autorização às autoridades portuguesas, pedido rejeitado pelo Governo.

Opositores elogiam medida e pedem mais

O secretário de Estado para os Assuntos do Mar anunciou ontem que as autoridades portuárias e de tráfego marítimo tinham comunicado ao barco, através do seu capitão, ao armador e ao cônsul da Holanda "que este não deverá passar em mar territorial português". Para Nuno Fernandes Thomaz, o Governo não deve ser "cínico" e fazer de conta que não sabe ao que vem o barco.

O CDS-PP aplaudiu a decisão do Governo, elogiando o "bom senso, clareza de ideias e coragem" demonstrados. Para António Pires de Lima, porta-voz do partido, a vinda do navio holandês pretende "zombar com a legislação portuguesa e fazer da questão do aborto um circo mediático inaceitável".

"Entendemos que a entrada do barco em águas nacionais era uma provocação à ordem jurídica nacional, independentemente daquilo que se pensa sobre a questão do aborto", sustentou Pires de Lima em declarações à Lusa. "Dessa forma, aplaudimos a decisão do Governo, que está bem fundamentada do ponto de vista jurídico e sanitário", acrescentou.
Também a Associação Portuguesa de Maternidade e Vida se congratulou com a decisão do Governo de impedir a entrada do barco em Portugal, apelando agora ao procurador-geral da República para estar atento e dar "instruções claras às entidades policiais para que identifiquem, persigam e punam os autores de tais crimes".

A associação afirma que a vinda do barco se traduziria "na disponibilização de meios para a prática do crime [de aborto], na divulgação e incitamento à sua prática, com angariação, em termos e condições que se desconhecem, de mulheres disponíveis para abortar".

Um dos motivos apresentados pelo Governo foi a protecção da saúde pública, uma vez que o navio pretende utilizar e distribuir medicamentos proibidos pelas autoridades portuguesas. O barco holandês, com clínica ginecológica a bordo, pretende fornecer, às mulheres interessadas em interromper a gravidez até às seis semanas e meia, a pílula abortiva, que será ministrada em águas internacionais. De acordo com o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed), a RU-486 não é comercializada em Portugal, mas, neste caso, compete exclusivamente às autoridades de saúde holandesas o controlo do transporte e distribuição do fármaco.

A RU-486 utiliza-se para produzir o aborto de embriões com poucos dias, através de uma hormona sintética que bloqueia a progesterona, indispensável ao prosseguimento da gravidez, e impede a implantação do embrião no útero, provocando a sua expulsão. Apesar de não ser comercializada em Portugal - há já uma petição em curso paracalterar esta situação, subscrita, entre outros, pela deputada comunista Odete Santos -, o seu princípio activo, o misoprostol (comercializado com o nome de Citotec), está disponível nas farmácias, sob receita médica, e nos hospitais, sendo "usado regularmente na indução do trabalho de parto ou no aborto terapêutico", afirmou o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia, Carlos Santos Jorge.

Segundo a directiva 92/29/CEE, já transposta para o Direito português, "o estabelecimento de regras sobre o aprovisionamento de medicamentos nos navios que arvorem pavilhão de qualquer Estado-membro, bem como a fiscalização do respectivo cumprimento, é da responsabilidade do país do respectivo pavilhão", ou seja, neste caso, da Holanda, explicou fonte do Infarmed à Lusa.

A directiva em questão determina que "cada Estado-Membro deverá tomar as medidas necessárias" para que, em "qualquer navio que arvore o seu pavilhão", as "quantidades de medicamentos e material médico a embarcar sejam determinadas em função das características da viagem ou dos tipos de trabalho a efectuar durante essa viagem".

Como o medicamento é fornecido às mulheres fora das águas territoriais portuguesas, a sua toma não é abrangida pela legislação nacional, não podendo, por isso, ser sancionada, realçou a fonte do Infarmed.

Oposição critica decisão do Governo

Não ficaram muito surpreendidos, mas os partidos da oposição já criticaram a decisão do Governo de impedir a atracagem do barco da Women On Waves no porto da Figueira da Foz.

O candidato à liderança do PS João Soares classificou a medida como um "preconceito completamente disparatado" e algo que "menoriza [Portugal] perante a União Europeia". "Por que é que o secretário de Estado [do Assuntos do Mar] não põe em causa os anúncios que todos os dias são colocados em jornais", promovendo a "interrupção voluntária da gravidez em cidades espanholas próximas da nossa fronteira?", questionou João Soares, prometendo que, caso seja eleito secretário-geral do PS e caso vença as próximas eleições legislativas, promoverá uma alteração da lei vigente sobre esta matéria através de uma votação parlamentar (e não através de novo referendo).

Também o candidato a secretário-geral socialista Manuel Alegre reagiu à "hipocrisia"do Governo. "A situação que existe em Portugal [no caso do aborto] é consequência da hipocrisia e de estarmos na cauda da Europa ao lado dos ultra-reaccionários católicos, a Irlanda e a Polónia", sublinhou Alegre, que defende a despenalização do aborto por vontade expressa da mulher até às doze semanas, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.

O secretário-geral do PCP, Carlos Carvalhas, criticou a "excessiva preocupação" do Governo relativamente à viagem da Women On Waves a Portugal. "O Governo está muito preocupado com o 'barco do aborto' e até já são quatro ministros a coordenar este assunto. Penso que são ministros a mais e que deviam era estar preocupados com outras questões do país, como a saúde", frisou.

O ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, adiantou ontem que a viagem do barco está a ser acompanhada pelo primeiro- ministro e pelos ministros da Defesa, Administração Interna, Saúde e Obras Públicas.

Também o Bloco de Esquerda acusou o Executivo de "fanatismo". Em declarações à SIC Notícias, o dirigente Francisco Louçã salientou que a verdadeira questão de saúde pública está no aborto clandestino, "responsável pela morte de milhares de mulheres e a segunda causa de morte em idade fértil", além de que o receio do Governo só teria fundamento se houvesse uma epidemia a bordo do barco.

Ontem, a Women On Waves pediu autorização formal para entrar e permanecer no porto da Figueira da Foz, tendo realçado que tal pedido era apenas uma formalidade dentro do espaço da União Europeia. O barco que a associação holandesa trouxe a Portugal, chamado "Borndiep", está oficialmente registado como uma embarcação comercial, respondendo directamente às autoridades marítimas holandesas. Antes de sair da Holanda, o barco foi inspeccionado e obteve permissão de partida. De acordo com a regulamentação nacional e internacional, todas as embarcações comerciais têm livre passagem e entrada em portos.

Contactada ontem pelo PUBLICO.PT, uma fonte da Women On Waves explicou que a intenção da organização é permanecer na Figueira da Foz durante toda a estadia em Portugal (até meados de Setembro), afastando a possibilidade de mudar de porto, e que, se o tempo ajudar, o barco, que transporta seis tripulantes, deverá atracar em Portugal este domingo. A presidente da Women On Waves, Rebecca Gomperts, já se encontra em Portugal a tratar de todas as formalidades relacionadas com a vinda do barco.

Women On Waves diz que cerca de cinco mil mulheres são hospitalizadas por ano em Portugal

A organização holandesa Women On Waves tem como objectivo promover a despenalização do aborto e prestar aconselhamento sobre educação sexual e planeamento familiar. No barco que traz a Portugal é possível ministrar a pílula abortiva a quem queira interromper a gravidez até às seis semanas e meia (há três anos que a associação espera licença para alargar a interrupção voluntária da gravidez a bordo do barco para doze semanas), desde que as mulheres em causa preencham os requisitos médicos e legais. "Em países nos quais o aborto é ilegal, a legislação nacional aplica-se apenas dentro das águas territoriais. Fora das doze milhas aplica-se a lei holandesa a bordo do navio", explica a organização, acrescentando que "em 2002, o ministro da Saúde holandês confirmou por escrito que a Women on Waves pode disponibilizar legalmente a pílula abortiva a bordo do navio".

Esta é a terceira vez que a organização, fundada em 1999 pela holandesa e médica de clínica geral Rebecca Gomperts, leva o navio até um país onde o aborto é ilegal, depois de já ter rumado à Irlanda, em 2001, e à Polónia, em 2003. Rebecca ganhou este ano o prémio "Margaret Sanger - Woman on valour" pelo seu papel no movimento de salvaguarda dos direitos reprodutivos.

O navio holandês vem a Portugal a convite de quatro associações portuguesas – Não te Prives - Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais, Clube Safo, União de Mulheres Alternativa e Resposta e Acção Jovem para a Paz – e tem como objectivo chamar a atenção para a necessidade de uma educação sexual objectiva, pela disponibilização de preservativos e pela garantia de serviços legais e seguros para prática do aborto. À semelhança do que aconteceu nos outros países visitados pela Women On Waves, a sua deslocação não escapou às críticas das associações – que ou defendem a total não realização de abortos ou a manutenção da lei actual –, que apelaram ao Governo para não permitir a atracagem do barco no país.

A legislação actualmente em vigor em Portugal considera que o aborto é um crime contra a vida intra-uterina, permitindo a interrupção voluntária da gravidez apenas em casos de perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida (até às doze semanas), grave doença ou malformação congénita do feto (até às 24 semanas, alargadas para qualquer altura quando o feto é considerado inviável) ou violação (16 semanas).

Segundo a Women on Waves, cerca de cinco mil mulheres são hospitalizadas por ano em Portugal em resultado de complicações pós-aborto e entre duas a três acabam por morrer em consequência da prática de abortos ilegais e sem segurança. A mesma organização refere que Portugal é o único país da União Europeia que leva a julgamento mulheres e profissionais de saúde pelo crime de aborto, apesar de um relatório do Parlamento Europeu, datado de Junho de 2002, recomendar que a interrupção voluntária da gravidez seja tornada legal e praticada em condições de segurança e apelar aos Estados membros para que não sejam julgadas mulheres que tenham abortado ilegalmente.

Sugerir correcção
Comentar